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O abismo sublime: A turbulenta relação que une cerveja, álcool e literatura russa

literatura russa
Já no fim de sua vida, Tchecov recebe a visita de Gorki. Foto exposta na casa-museu Tchecov, em Moscou

A literatura constrói, a rotina destrói. E, nesse ínterim povoado pela angústia inesgotável, o zero absoluto da essência, a bebida alcoólica surge como fonte primária de abastecimento de algo que, de maneira imprudentemente genérica, poderíamos definir como sentido. Que não seja essa uma ideia-síntese. Mas, quem sabe, que funcione como mínima imagem para definir o russo, esse russo sempre atrelado aos mujiques e aos revolucionários, às doses de vodca e ao Dostoiévski.

Eis aqui, porém, o problema real. Se já soa desgastado determinar qualquer povo sem recair em um descartável clichê, mais difícil ainda parece ser a definição de uma gente marcada por dois componentes tão grandiosos quanto inconcebíveis: o álcool e a literatura. Dois componentes, aliás, que se tornaram irmãmente indissociáveis.

“Primeira coisa: existem estereótipos – a pontualidade inglesa, por exemplo – e a bebedeira russa é um deles. Como no Brasil, onde se diz que tudo é carnaval e futebol, e nada mais. Antes, é preciso ter isso em mente”, aponta Elena Vássina, pesquisadora russa formada na Faculdade de Letras da Universidade Estatal de Moscou Lomonóssov (MGU) e professora de Letras Russas da Universidade de São Paulo (USP). “A bebida está presente na literatura russa. Sempre, desde Púchkin.”

Por mais que tenha seu traço estereotipado, a simbiótica relação entre álcool e literatura russa também é apontada como inevitável por Irineu Franco Perpetuo, jornalista e tradutor de importantes obras russas para o português, como O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, e Vida e Destino, de Vassíli Grossman.

“Associar Rússia e alcoolismo parece reforçar estereótipos, mas, se a língua é espelho da cultura, há muitas palavras específicas para isso em russo”, explica o tradutor. Zapói, por exemplo, define uma bebedeira que dura dias. “Ou sobutýlnki, companheiro de pândega, cuja raiz é justamente a palavra butýlka – garrafa.”

Há, ainda, um outro termo emblemático: vytrezvítel, uma espécie de delegacia para cura de ressacas. Foi criada antes da Revolução de 1917 e sobreviveu ao fim da URSS – o último vytrezvítel da Rússia foi fechado em 2006. Esse “estabelecimento” foi tema de uma novela escrita pelo dramaturgo Vassíli Chukchin (1929-1974), E de manhã eles acordaram, de 1973, e adaptada para o cinema em 2003, segundo Perpetuo.

“Na literatura (russa), o álcool me parece uma presença tão ou mais forte quanto o duelo – já que os duelos ficaram no século XIX, e o consumo de bebidas alcoólicas segue firme nos séculos XX e XXI – seja como vício, seja como celebração”, acrescenta o tradutor, remetendo a um trecho de Diário de um Escritor, de Dostoiévski:

O russo bêbado gosta de beber por desgosto e de chorar. Quando cai na farra, não celebra, apenas provoca desordens. Sem exceção, vai se lembrar de uma ofensa qualquer e passar um reproche no ofensor, com este presente ou não.

A cerveja “ocidental”
Embora tenha participação bem menos canônica na formação histórica e literária da Rússia, a cerveja possui uma pequena influência em algumas obras. Professora da USP, Vássina conta que a bebida apareceu no país durante o início do século 18, com Pedro, o Grande, um dos mais importantes czares russos.

“Ele ocidentalizou a Rússia, abriu a janela para a Europa e fundou São Petersburgo. Como trabalhou na Alemanha, na Holanda, ele trouxe o hábito de beber cerveja. Começou a servir na corte, principalmente a cerveja produzida por ingleses e alemães”, comenta a professora russa.

E é justamente com esse caráter “ocidental” que a cerveja aparecerá em Oblómov, escrito por Ivan Gontcharóv e publicado pela primeira vez em 1859. Retrato de uma aristocracia decadente e ociosa, uma antítese das então fabulosas promessas de progresso materializadas pela técnica e pela ciência, Oblómov é um sujeito que passa boa parte do tempo em casa dedicando-se, quase exclusivamente, com raras exceções, a comer e beber.

Sem disposição até para fazer as próprias compras, o personagem ordena seus pedidos para Zakhar, o seu estabanado criado. E, entre os itens geralmente solicitados, está a cerveja preta. “A cerveja não era aristocrática, mas a classe alta bebia. Não era uma bebida russa. Então, é a imagem dessa cerveja preta mesmo, uma cerveja inglesa, alemã. Da ocidentalização da Rússia”, explica Vássina.

A cerveja também será coadjuvante em Inveja, de Iuri Oliécha, publicado já no período soviético, em 1927. Focado nas estripulias de Nikolai Kavaliérov, um anti-herói dubiamente burguês e reticente com a revolução, o livro constrói com maestria um ambiente dominado pela ambiguidade. Tanto a perspectiva sobre os personagens quanto à leitura “sociológica” vão mudando com o andamento da narrativa. É uma obra essencialmente moderna, com amplas interpretações.

Poema visual de Prigov: O que há na cerveja

Situação idêntica ocorre com a bebida. Em sua vida desregrada, Kavaliérov vive em bares e, quase sempre, mais até do que vodca, opta pela cerveja. Como elucida Vássina, “a cerveja se torna uma bebida barata e popular na época soviética”, algo bem retratado em Inveja. Ao mesmo tempo, a bebida parece sintetizar um mea culpa de Oliécha, autor que reconheceu sua similaridade com Kavaliérov: enquanto os revolucionários trabalham na construção da URSS, Kavaliérov está mais concentrado na cerveja.

Mais decisiva será a participação da bebida em um poema de Dmitry Prigov, escrito já no fim do período soviético, quando a cerveja cai de vez no gosto popular. “Ele fez um poema visual em máquina de escrever, antes de existirem os computadores, creio que em 1984, 1985. Prigov preenchia todo o papel A4 com uma frase latina muito conhecida: ‘In vino veritas’. Era um triangulo que diminuía até o final da página e, no fim, tinha: ‘O que há na cerveja’. É um poema visual.”

Púchkin, Napoleão e a champagne
Se autores como Dostoiévski, Tolstói, Tchecov, Gogol e Gorki se tornaram mais célebres ao longo das décadas, ao menos no que se concerne à fama ocidental, a literatura russa deve todas as suas bases a um nome menos cultuado por aqui: Aleksandr Púchkin (1799-1837). É nele, também, onde estão as bases “alcoólicas” que inspirarão outros escritores.

Duas bebidas são essenciais em importantes livros de Púchkin, em especial o romance em versos Eugênio Oneguin, considerado por muitos como a sua obra-prima. Trata-se da champagne e do vinho. São, aliás, dois “presentes” legados pela França após Napoleão perder a guerra para a Rússia, segundo relata a professora da USP.

“Púchkin é o início da literatura russa, o diálogo com todas as obras que vêm depois. E ele fala muito de champagne porque, depois da guerra contra Napoleão, ela se torna a bebida predileta dos aristocratas russos. Depois, fica até popular”, detalha Vássina. “Como a Rússia venceu Napoleão, foi uma parte da contribuição. Teve que pagar durante 30 anos, a champagne e o conhaque. Então, isso vai estar na literatura russa, em Púchkin.”

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Casa-museu Púchkin na Rua Arbat, ícone da boemia moscovita

A abordagem do escritor é aguda e reflete um caráter indissociável da cultura local. Como se, desde a pedra fundamental, a literatura russa enfrentasse a questão do estereótipo: se as duas bebidas são associadas a uma ascendência glamorosa na França, quase sovina, em Púchkin elas refletem exatamente o oposto.

“Púchkin fala de Veuve Clicquot, entre outros, e dos vinhos franceses. Fala muito de bebida, pois era impossível ocorrer um jantar russo sem o acompanhamento de vinho francês ou de champanhe. Na Rússia bebe-se bem mais champagne do que na França. É um estereótipo: dizem que francês é econômico, e o russo o contrário. A gente não tem limite, gasta tudo. Tem um caráter generoso. Então, vai encontrar muito champagne na vida. Tanto a cara, como a francesa, como algumas excelentes produzidas na Crimeia.”

Também em Guerra e Paz, de Tolstói, o vinho e a champagne têm importante participação. Irineu Franco Perpetuo, que está trabalhando na tradução da obra, relata que recentemente verteu uma passagem sobre um almoço, realizado em honra de um personagem histórico, o príncipe Bagration. E, aqui, as bebidas vão retratar um caráter quase complementar ao relatado por Vássina: os excessos.

“A refeição é fartamente regada a bebidas – vinho e champanhe, especialmente -, e aos brindes exaltados e prolixos que são de hábito na Rússia”, conta o tradutor. “Uma coisa que me ensinaram quando estudante do idioma é que os russos não costumam bebericar – eles esvaziam o conteúdo do copo de uma vez. Nessa cena do romance, para demonstrar que as taças foram esvaziadas, os personagens jogam-nas no chão. E não estamos falando de mujiques russos, mas sim da fina flor da aristocracia do país, reunida no Clube Inglês.”

Já na literatura soviética o vinho francês perderá espaço e dará lugar ao georgiano. É uma bebida mais doce e, sobretudo, o que parece reforçar a sua influência, adorada por Stalin. “Foi um culto de beber vinho georgiano. Tem vários escritores contemporâneos e soviéticos que bebem – e os personagens também”, afirma Vássina.

Vodca
Por mais que a cerveja, o vinho, a champagne e mesmo o licor – outra bebida fundamental na formação do país – tenham participação ora coadjuvante, ora decisiva na história literária russa, ainda resta toda uma margem lamacenta que levará rumo à fonte desse abismo humano, social, moral, ético, que parecem sempre nos sinalizar os Púchkins, os Tolstóis, os Tchecovs, os Dostoiévskis, os Turguênievs, os Leskovs, os Bunins, etc., etc., etc.

Contra o estereótipo desgastado, contra esse tipo irrevogável de essência esvaziada, resta-nos a vodca. A vodca e, claro, uma dose de literatura. Pois é na união entre essas entidades tão óbvias – e ao mesmo tempo tão sublimes – que parece possível descortinar uma dualidade fundamental e preencher o vácuo de monotonia combatido de frente pelo Id, essa estrutura inconsciente que Freud só pode ter desvendado ao analisar um russo.

De um lado, é evidente, essa relação aponta para um dos mais tenebrosos aspectos russos: o alcoolismo. Doença que não apenas vai inspirar dezenas de obras, como fomentar uma série de “debates” literários. “Em Crime e Castigo, por exemplo, o pai da Marmeladov é alcoólatra e Dostoiévski escreve isso muito detalhadamente. Tudo está ligado à destruição trágica desse pequeno funcionário público. Deixa viúva, filho. Ele é alcoólatra, possui uma doença”, lembra Vássina.

Tolstói, por sua vez, dedicou parte de sua vida para combater a doença. “Ele tem várias obras contra o alcoolismo, contra esses hábitos, como os contos e as novelas”, diz a professora. “Ele faz campanha contra o alcoolismo do povo, é algo que passa por toda a obra dele. A família dele até bebia, vinho sempre foi servido. Mas uma coisa era beber cerveja, vinho, vodca. E a outra é o alcoolismo.”

Nada, evidentemente, é tão simples. Se reflete a nossa pulsão de morte com um impacto avassalador, a vodca também vai destruir qualquer leitura estereotipada de que, bem, as coisas são o que são. O cultuado verso de Maiakóvski, lembrado por Irineu Perpetuo, dá o tom preciso do contraponto:

Melhor morrer de vodca do que de tédio

Eis aí, talvez, um dos pontos centrais da literatura russa: a vodca como referência de um povo que, movido também por um instinto irrefreável de coletividade, de abundância, de generosidade, utiliza todas as armas possíveis para lutar contra essa monotonia, esse tédio que se reproduz como tradução de existência.

“O tema da vodca é bem importante e está sempre presente”, pontua Vássina. “Mas também, em comparação, quando vamos falar de vodca, de bebida e de literatura, é interessante pensar como a bebida é sempre pensada pelo lado coletivo – e nunca individual. As pessoas sempre bebem juntas. Esse é o ponto. Tanto que as drogas praticamente não estão presentes na literatura russa, porque é algo solitário.”

O alcoolismo, então, segundo arremata a professora, vem da necessidade quase primordial dos russos se unirem para enfrentar o tédio. “Isso está ligado com o clima de inverno, com os camponeses. Não tinha nada para fazer nos séculos anteriores, porque o camponês não trabalhava no inverno. Lógico que eles começaram a beber muito.”

Tanto o tradutor quanto a professora são unânimes em apontar a mais icônica obra abordando o alcoolismo: Moscou-Petuchkí, de Venedikt Erofêiev. O livro, que ainda não saiu no Brasil, narra a viagem de um intelectual alcoólatra em um trem de subúrbio, entre as cidades de Moscou e Petuchkí.

“É uma viagem de trem e uma descrição de bebedeira”, detalha Vássina. “A obra, para nós, é como uma Odisseia. Foi escrita no início dos anos 1960, é muito importante”. Seu autor, complementa a professora, morreu com apenas 51 anos. “Faleceu de alcoolismo. Câncer de garganta.”

Nesse abismo substancial em que o sentido cotidianamente nos escapa, é fundamental lembrar de um último escritor. “Não há como não mencionar Serguei Dovlátov (1941-1990), mestre da ironia, do humor e do entrelaçamento entre ‘real’ e ficcional”, aponta Perpetuo. Tema de um filme recentemente premiado no Festival de Berlim, Dovlatov, de Aleksei German Jr, o autor teve seu romance Parque Cultural traduzido aqui em 2017. Nele, escreve:

“Para os outros, a vodca é domingo. Para mim, são dias de semana monótonos… Ora desintoxicação, ora xadrez, dissidência pura… A esposa, claro, está descontente. Vamos arranjar uma vaca, diz ela… Ou uma criança… Desde que não beba. Mas, por enquanto, eu me abstenho. Quer dizer, sigo bebendo…”

Sigamos, então, uma última vez. Essência trágica de um povo devorado pelos seus excessos ou resistência irônica de uma gente que sabe rir do ocaso? Como Dovlátov, nos abstenhamos – de respostas. Como se houvesse respostas. Se a rotina monótona nos carrega dia após dia para o fim, ao lado do abismo existe sempre um copo de vodca. E, já no breu, quando até a garrafa se turvar, ainda sobrará essa réstia sem estereótipo e imortal dos Púchkins, dos Tolstóis, dos Tchecovs, dos Dostoiévskis, dos Turguênievs, dos Leskovs, dos Bunins, etc., etc., etc.

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