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Balcão da Maria Bravura: A cerveja e a revolução das mentes

“A definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”, frase atribuída a Albert Einstein (há controvérsias). Acredito que nunca se falou tanto em política e nem mesmo houve tanto interesse vindo de diversas camadas sociais a respeito deste assunto como nos últimos tempos. Concomitantemente, foi possível perceber uma enorme carência de conhecimento sobre fatos históricos consistentes e comprovados nos debates, limitantes da revolução das mentes.

Falo tudo isso pra chegar em um ponto: a história é nosso guia obscuro (por causar arrepios) e iluminado para a evolução e progresso da sociedade. Isso porque ela nos dá a possibilidade de tirar conclusões objetivas a respeito de como podemos redirecionar nossos passos para um futuro melhor em relação a um que se constrói pautado na repetição das mesmas coisas. Se você soubesse que certas escolhas suas do passado te levariam para um buraco escuro e solitário, você repetiria a mesma escolha? Creio que não. Aí está!

O que a história tem a nos dizer sobre, por exemplo, os motivos, razões ou circunstâncias de encontrarmos mais homens do que mulheres trabalhando no setor cervejeiro? Qual foi o desdobramento desse resultado que vemos hoje e como não repetir os mesmos erros? Fazendo uma visitinha ao passado, logo ali, cerca de 10 mil anos atrás, vemos a cerveja sendo descoberta “por um acaso” e sendo associada à Ceres, a deusa da agricultura. Também vemos mulheres, chamadas de Sabtiem na antiga Suméria, considerada o berço da cerveja, desenvolvendo técnicas de produção, pois eram responsáveis pelo cultivo e processamento dos grãos para obter alimentos (principalmente pão) e acabaram se tornando responsáveis também pela produção de cerveja para a família.

As Sabtiems eram mulheres admiradas, detentoras de poderes divinos (não se sabia ainda como se dava a fermentação) e até mesmo homenageadas como santas por prover a cerveja. Ainda em nossa visita ao passado, lá na Europa da Idade Média vemos estas mulheres, chamadas na Inglaterra de Alewives, lucrarem com a cerveja, “descolando” uma renda extra para a família com o excedente da produção caseira e abrindo suas casas para viajantes tomarem cerveja. Até aí, todos felizes. Até que, muito visionárias, elas abriram tavernas e fizeram da produção cervejeira um negócio realmente lucrativo.

Daí para frente ficou difícil para as mulheres se manterem neste cargo, pois com isso elas alcançaram independência financeira e, com a independência financeira, muitas descobriram que não precisavam de homens para prover suas casas. E se eles não tivessem nada além disso a oferecer…já sabe, né? Aí, a coisa “desandou” (assim alguns chamam as revoluções da vida) e, resumindo, elas foram proibidas de realizar atividades comerciais. Fora isso, a maioria das mulheres não podiam ter acesso à educação, nem mesmo à instrução mais básica, tampouco participar de ambientes coletivos. As que desafiavam estas proibições arriscavam muitas coisas e perdiam tantas outras.

Com a Revolução Industrial do século XVIII, a mulher então perdeu de vez seu espaço no universo cervejeiro, uma vez que todas estas normas sociais que vinham sendo impostas há séculos surtiram seus efeitos desastrosos e resultaram em um estrondoso número de analfabetismo feminino, minando suas chances de desenvolver as habilidades necessárias para o mundo dos negócios. Por essas e outras foi que as atividades comerciais – bem como a produção da cerveja – passaram de mãos femininas às masculinas e, assim, o homem passou a ser visto como o mais capaz de estudar, aprender, produzir e negociar.

A mulher só retornou ao cenário cervejeiro à época que remonta à Segunda Guerra Mundial, pois com os homens nos campos de batalha, alguém precisava substituir a mão de obra e saciar a sede dos soldados. E assim ela foi voltando, voltando com mais força (impulsionada por alguns movimentos sociais) e voltando…e tem voltado até hoje.

Bom, e qual a relação disso tudo com a frase atribuída a Albert Einstein? É que acho deslumbrante a inteligência humana que nos dá a chance de fazer esse tour ao passado e reavaliar toda a relação que foi sendo construída entre homens e mulheres ao longo da história, nos oferecendo a chance de não repetir os mesmos erros e de obter a nível individual e coletivo resultados diferentes, resultados melhores. Quando se volta ao passado, a sensação que fica é que já perdemos muito tempo com esse “lero-lero”! Ora, já estava mais do que comprovado o quanto as mulheres poderiam contribuir para o mercado cervejeiro e, mesmo assim, o preconceito e a necessidade de controle e dominação falaram mais alto.

Imagine você as astronômicas evoluções e progressos que já teríamos feito se a participação das mulheres no setor cervejeiro nunca tivesse sido constrangida? Não porque elas são especiais ou deusas, mas porque homens e mulheres em suas singularidades e belezas, quando juntos em um mesmo propósito, podem fazer do mundo um lugar muito melhor – e por que não do mundo cervejeiro? Será que se simplesmente o homem, assim que viu quão interessante a atividade cervejeira poderia ser em variadas pautas da vida, dividisse este espaço com as mulheres, cada um contribuindo a sua maneira, hoje nós não estaríamos em um patamar de cultura e mercado cervejeiro muito acima do que estamos hoje? Não sei, são muitos “se” pra refletir.

Não deixa de ser no mínimo curioso que o Brasil é um dos países mais atrasados em termos de igualdade de gênero e, dentre os países de maior relevância no mercado das cervejas artesanais, ainda “sua a camisa” e também brinca bastante de “siga o mestre” com os Estados Unidos. Mas isso é assunto para outro texto.

A parte boa de tudo isso é que muita gente já fez esta mesma reavaliação que ora fazemos aqui e não quis dar uma de lunático cometendo os mesmos erros. Hoje, graças a um montão de circunstâncias e também à rebeldia e à reparação, podemos dar uma volta pelos dias atuais e ver mulheres presentes no setor cervejeiro produzindo cervejas, criando receitas, avaliando e harmonizando cerveja com comida, disseminando a cultura cervejeira, ensinando sobre cerveja, cultivando leveduras e desenvolvendo a biotecnologia, administrando cervejarias, fundando novos conceitos, unindo cerveja a causas sociais de grande importância, vendendo insumos, desenvolvendo tecnologias, enfim (deu até sede), explorando e ganhando o mundo através das cervejas.

Fico realmente orgulhosa e cheia de esperança ao pensar neste ano de 2018 que se passou e relembrar quantas conquistas ocorreram neste sentido: teve a Eisenbahn lançando cerveja produzida somente por mulheres com brassagem liderada por Amanda Reitenbach (fundadora e CEO do Science of Beer) com participação de Aline Araujo, Bárbara Andrade, Beatriz AmorimFabiana Arreguy, Gabriela Müller, Katia Jorge, Laura Brait, Ludmilla Antoniazzi, Rafaela Brunetto e Rosaria Pacheco. Teve lançamentos de cervejas em homenagem a mulheres, como a Kitty, da Goose Island Sisterhood (confraria de mulheres criada em 2017, por Beatriz Ruiz, gerente de conhecimento cervejeiro da Ambev, gerente de marca da Goose Island no Brasil e a primeira brasileira a obter o título de Certified Cicerone).

Teve o lançamento da cerveja Batom Vermelho, projeto idealizado pela Confraria Maria Bonita com apoio de outros 18 coletivos e confrarias, para aumentar a conscientização, arrecadação de doações para instituições de combate ao câncer de mama e aumento da autoestima das mulheres que passaram por processo de mastectomia e quimioterapia. Teve a segunda edição do reality de cerveja da Eisenbahn que contou com mulheres entre os competidores e que teve mulher campeã, Anne Galdino. Teve confrarias femininas se fortalecendo e se destacando, como a Confece  (primeira Confraria Feminina de Cerveja do Brasil) e a Confradelas (maior confraria feminina para estudos de cervejas do Nordeste). Teve nomes femininos brilhando no meio cervejeiro, como Luiza Tolosa, Priscilla Colares, Laura Aguiar, Fernanda Nascimento, Michelle Ferraz, Daiane Colla, dentre outros; e teve muita mulher se iniciando nas cervejas artesanais e se apaixonando.

Sabemos que há ainda muitas batalhas pela frente para que o mercado cervejeiro efetivamente seja 1. Livre de desigualdades 2. Feito por pessoas diferentes que lutam a favor de uma grande causa em comum: a de ampliar, disseminar e valorizar a cultura da cerveja artesanal. Mas, a história mostra, como mencionado humildemente neste texto, que para qualquer coisa avançar é preciso haver revolução, é preciso mudança na maneira de pensar do ser humano. Não daria para avançar rumo aos conhecimentos da biotecnologia se continuássemos acreditando que a cerveja é fermentada pelas fadas. Não dá para avançar rumo à conscientização coletiva enquanto ainda não cuidamos do nosso lixo. Também não dá para avançar rumo à igualdade enquanto continuarmos distorcendo e menosprezando a luta feminina.

Quando penso no universo que tange as cervejas artesanais, vêm a minha mente seus valores preciosos de vida, pelos quais me apaixonei e com os quais me identifiquei: questionamento ao consumo excessivo (beba menos, beba melhor), ousadia, criatividade, inovação, irreverência, valorização dos negócios locais, oposição às megacorporações e seus produtos padronizados para consumo em massa, encorajamento para a mudança de hábitos (despertando paladares e abrindo possibilidades mil de apreciações). Isso em oposição à fidelização às marcas, diversidade de estilos, etc. Ou seja, existe todo um posicionamento e um estilo de vida defendido de forma subliminar pelas cervejas artesanais e que vão ao encontro da evolução da sociedade e, como não poderia ser diferente, da mente das pessoas.

Viva a cerveja artesanal e sua revolução, que não parecem estar para brincadeiras e tampouco parecem combinar com retrocesso e repetição dos erros do passado, mas com celebração da vida e interação de pessoas e suas mentes.

Um brinde à liberdade, ao respeito, à revolução das mentes e aos direitos conquistados! Saúde!

*Fernanda Pernitza é psicóloga, sommelière e sócia-fundadora da Maria Bravura Cervejas Especiais

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