fbpx

Balcão Xirê Cervejeiro: Mercado cervejeiro, teatro e o Pequeno Manual Antirracista

O que o teatro e o mercado cervejeiro têm em comum?

Vem que eu te conto.

No segundo semestre de 2020, mais precisamente em junho, o mercado cervejeiro passou a se envolver com a luta antirracista, embora a sociedade brasileira seja terrivelmente racista, como já nos apontou Nelson Rodrigues, em 1957: “Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto brasileiro é toda tecida de humilhações. Nós o tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós dia e noite. Acho o branco brasileiro um dos mais racistas do mundo.”

E foi uma violência racial ocorrida nos Estados Unidos, a morte do afro-americano George Floyd, asfixiado por um policial branco, que causou indignação na população mundial, sobretudo a branca, que até aquele momento vivia sob a égide de um ensaio sobre a cegueira. No Brasil, tivemos as redes sociais inundadas com telas pretas e com a hashtag #somostodosGeorgeFloyd, como se a cada 23 minutos aqui, no Brasil, não tivéssemos um jovem negro asfixiado pela bala da polícia.

Para além desse fato, em agosto do mesmo ano, tivemos um grupo de cervejeiros no Brasil que, através do aplicativo WhatsApp, sentindo-se à vontade, proferiu falas de cunho racial de forma negativa a uma sommelière negra e à uma cervejaria cujos donos são pessoas negras. A sommelière sou eu. 

A violência racial dirigida a essas pessoas fizeram muitos dentro do mercado cervejeiro se posicionarem contra o racismo. Tivemos naquele momento, por exemplo, a mudança no comando da Abracerva (Associação Brasileira de Cerveja Artesanal), que, naquele ano, foi ocupada pela primeira vez por uma mulher, uma mulher negra, Nadhine França, que deixou a presidência no ano seguinte, por questões familiares. A presidência da associação foi assumida pelo cervejeiro e empresário Giba Tarantino, que fazia parte da gestão de Nadhine e encontra-se à frente da entidade no presente momento.

No mercado, a luta contra a violência racial, que parecia uma tendência, infelizmente não se consolidou. Passado o “modismo” e a monetização por alguns espaços das dores das vítimas, muitas empresas pararam de combater o racismo, tratando a questão como identitária ou até mesmo nomeando a situação como vitimismo, provocando uma tentativa de silenciar quem se coloca contra a violência racial.

E aí você me pergunta: Sara, onde entra o teatro e a cerveja neste assunto?

Pois bem. No dia 4 de abril, estreou, na cidade de São Paulo a peça Pequeno Manual Antirracista, inspirada no livro da filósofa Djamila Ribeiro, que foi adaptado para o teatro pelo dramaturgo, diretor, ator, apresentador e escritor Aldri Anunciação, diretor da peça.

A peça tem magistral interpretação da atriz Luana Xavier, que inunda o palco com seu brilhantismo e competência.

Em um cenário panóptico, bem ao modo foucaultiano, que tem no centro do palco um olho que tudo vê e, ao seu redor, janelas/grades e portas pesadas que lembram uma prisão, algo bem disciplinar, a professora Bell, é alçada pela direção da escola para dar uma nova disciplina, o “Manual Antirracista”,  à sua turma de alunos, alunas e alunes, com o objetivo de mostrar a todes a falácia da democracia racial no Brasil.

O olho que tudo vê, vocaliza todas as formas de violências coloniais e raciais, convoca como um espelho todas as pessoas a enxergar o óbvio, mas, também, flerta com “Tótem da Liberdade” obra de 1974, de Abdias Nascimento, que nos faz refletir no seguinte sentido: enquanto a violência racial for a bússola que nos guia, não haverá liberdade para ninguém. 

Ainda sem entender a conexão?

Vamos lá. Agora entra o mercado cervejeiro, porque o “Pequeno Manual Antirracista”, que virou peça teatral, está, desde os fatos racistas ocorridos no mercado cervejeiro em agosto de 2020, na ementa metodológica e bibliográfica do curso de sommelier de cerveja da escola cervejeira Instituto Ceres, que se localiza no estado de Pernambuco. Abaixo, a fala de uma das professoras do curso e sócia-proprietária do Ceres, Chiara Rêgo Barros:

“O Ceres nasceu com o objetivo de democratizar o conhecimento cervejeiro. Trazer oportunidades para as pessoas do Nordeste do país serem protagonistas, em especial as mulheres. De lá até aqui foram diversos projetos sociais com envolvimento ou não da cerveja, cursos gratuitos, programa de bolsas para pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica (inclusive, nos cursos online, 10% das vendas são repassados através das bolsas), bolsas de estudo para mulheres negras. As questões de diversidade são vivenciadas no dia a dia do instituto, faz parte de quem nós somos. 89% da nossa equipe é composta por mulheres. 44% são pessoas negras. No nosso curso de formação Sommelier de Cerveja, tínhamos uma preocupação ainda maior por formar novos profissionais para um mercado desigual, racista, LGBTFóbico, machista e xenófobo. E nos perguntávamos: quem é esse profissional que queremos? Desde o princípio a disciplina de ética faz parte do curso, mas ela é   abordada todos os dias, em todas as disciplinas. Temos um termo de conduta que os alunos se comprometem com o que é básico: o respeito! Não toleramos qualquer ato racista, machista ou de qualquer outro cunho que desrespeite o outro. E isso se replica no nosso plano pedagógico para nossa equipe. Diante das atrocidades ocorridas nos casos de racismo e machismo em um grupo de cervejeiros no WhatsApp, fizemos uma revisão do nosso conteúdo das disciplinas de ética e diversidade e inclusão. Trouxemos profissionais especialistas para abordar estas questões em sala de aula e incluímos o Pequeno Manual Antirracista, de Djamilla Ribeiro, no material didático do curso Sommelier de Cervejas. Além disso, trouxemos a professora CAMILA GOMES, uma profissional super qualificada para nossa equipe. Uma mulher negra, antropóloga, psicóloga social e clínica, que trouxe muitas reflexões e tem engrandecido a nossa caminhada. Ainda é pouco para o que precisa ser feito, mas acreditamos que esses pequenos passos são muito importantes para a formação de profissionais que irão construir um mercado cervejeiro mais diverso e igualitário.”

Trouxe para o nosso “Balcão Xirê Cervejeiro” o Pequeno Manual Antirracista para continuarmos um debate e diálogo muito importantes para todas as pessoas. A violência racial é um problema que nos atravessa todos os dias e que precisamos, de forma corajosa e sistêmica, combater.

Para quem está em São Paulo, a peça fica em cartaz até este domingo (14), com sessões às 16h e às 20h. Os ingressos poderão ser retirados na bilheteria de forma gratuita.

Onde? No CCSP (Centro Cultural São Paulo), situado na Rua Vergueiro, número 1.000, no bairro Liberdade.

Até a próxima coluna. 


Referências:
1- https://abracerva.com.br/2021/07/19/abracerva-anuncia-mudanca-na-presidencia-executiva-e-projeta-sequencia-do-trabalho-da-atual-gestao/

2- https://mundonegro.inf.br/sommelier-sara-araujo-sofre-ataque-racista-em-grupo-de-sommeliers-brancos/
3- https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/08/cervejeiros-trocam-mensagens-racistas-sobre-concorrentes-negros.shtml
4- https://www.estadao.com.br/paladar/so-de-birra/a-cerveja-luta-contra-o-racismo/
5- Literatura Negro Brasileira, Luiz Silva Cuti.


Sara Araujo é graduada em Ciências Jurídicas pela Instituição Toledo de Ensino Bauru (SP) e atua na área de execução penal. É graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (PR), pós-graduanda em história da África e da Diáspora Atlântica pelo Instituto Pretos Novos do Rio de Janeiro, sommelière de Cervejas pela ESCM/Doemens Akademie e criadora e gestora do @literaturanobar.

2 Comentários

  • Joca Reply

    17 de abril de 2024 at 08:11

    Um texto magnífico e necessário para todos. Somos todos Sara.

  • Cilene Saorin Reply

    18 de abril de 2024 at 12:21

    Lucidez, Sara. A sociedade brasileira (e a comunidade cervejeira brasileira, por consequência) carece de lucidez para o óbvio. Se não pelo imperativo moral, que seja pelo imperativo capital. Se bem que uma atitude farsante não convence e não vende. E, se vende hoje, certamente não venderá amanhã. Acredito muito em Economia Transformativa. E pra isso, é preciso coragem e paciência pra desmantelar esse tenebroso status quo. Minha experiência com o tema ‘Ética’ em sala de aula data dos idos de 2010 e é sempre surpreendente. No tempo, a escuta tem evoluído e estou certa que conseguiremos a transformação. Muito obrigada, valente Sara! Beijo, Cilene.

Deixe um comentário

Login

Welcome! Login in to your account

Remember me Lost your password?

Lost Password