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Balcão do Profano Graal: A lei seca nos Estados Unidos – As consequências do nobre experimento

Salve nobres,

No dia 5 de dezembro de 1933, o Congresso dos Estados Unidos da América aprovou a 21ª Emenda da Constituição norte-americana. Essa emenda revogava a 18ª Emenda, aprovada 13 anos antes e que ficou mais conhecida na história como a Lei Seca (1920-1933).

A Lei Seca proibia “o fabrico, venda ou transporte de licores embriagantes dentro dos Estados Unidos e de todos os territórios submetidos à sua jurisdição, bem como a sua importação para os mesmos”. Foi ratificada por 36 dos então 48 Estados norte-americanos em janeiro de 1919, com previsão de entrada em vigor um ano depois.

Foi fruto de uma grande campanha contra o consumo de bebidas alcóolicas, impulsionada por grupos religiosos (especialmente metodistas, batistas e luteranos). Ao lado de argumentos morais e religiosos, o consumo excessivo de bebidas alcóolicas, principalmente de destilados, era considerado prejudicial à saúde física e psicológica, estando relacionado a problemas de violência doméstica e perda de produtividade no trabalho. Os movimentos pró-temperança tiveram início ainda no final do século XVIII nos Estados Unidos, mas ganharam força no final do século XIX. E os seus ativistas se dividiam entre aqueles que defendiam uma moderação do consumo e aqueles que defendiam a sua proibição completa.

Quando foi ratificada a 18ª Emenda, 33 dos 48 estados americanos já estavam “secos”. Ou seja, já possuíam leis estaduais que reduziam em algum nível (ou até mesmo baniam completamente) o consumo de álcool. A Lei Seca veio só ratificar essa situação. Na prática, a 18ª Emenda, Junto com a Lei Volstead (batizada com o nome do congressista pró-temperança Andrew Volstead), que definia bebidas alcóolicas como todas aquelas com mais de 0,5% ABV, colocou na ilegalidade de uma hora para outra a quinta maior indústria do país.

Porém, depois de 13 anos, ficou claro às autoridades norte-americanas que o “nobre experimento”, como o definiu o Presidente Herbert Hoover (1929-1933), não havia dado os resultados esperados. A primeira dificuldade encontrada foi a sua fiscalização em todo o território nacional. O pequeno efetivo não conseguiu impedir o contrabando de bebidas, facilitado, ainda, pela conivência de agentes públicos de segurança, o que levou ao aumento da criminalidade. O mercado de bebidas contrabandeadas enriqueceu mafiosos. E seu controle era alvo de uma disputa entre grupos de gangsters que ficou marcada por confrontos violentos e assassinatos.

O álcool contrabandeado era vendido em bares clandestinos, que se multiplicaram. Os famosos Speakeasy (“falem baixo”, em tradução literal), que funcionavam no porão ou nos fundos de outros estabelecimentos de fachada e também eram controlados, muitas vezes, por mafiosos. Um agente da Lei Seca calculou que em 1926 havia 100.000 deles apenas em Nova York, contando com autoridades locais entre os seus clientes regulares. Assim, Al Capone (1899-1947), o mais famoso dos gangsters, tinha razão ao afirmar certa vez: “Eu dou ao público o que o público pede”.

Além disso, a lei continha uma série de exceções e isenções que foram aproveitadas por todos aqueles que pretendiam burlar a lei. Permitia, por exemplo, a fabricação e venda de alcoólicos para outros fins que não bebidas, como o seu uso em pesquisas científicas; o consumo de álcool sob prescrição médica; e também a fabricação caseira de até 200 galões por ano.

A Era da Proibição teve grande impacto sobre a indústria de bebidas. Segundo Silvia Limberger, das 1568 cervejarias existentes em 1910, apenas 756 voltaram à atividade em 1934. E Tiago Gomes da Silva afirma que o número de destilarias foi reduzido em 85%. Apesar disso, a Lei Seca acabou tendo o efeito oposto ao que os defensores da temperança pretendiam. Segundo Pete Brown, antes da Lei Seca, havia uma tendência constante de mudança do consumo de bebidas alcoólicas em direção à cerveja. Porém, como cerveja era muito mais difícil de produzir ilegalmente do que o gim, durante a proibição os destilados passaram a representar 75% de todo o álcool consumido nos Estados Unidos.

A partir de 1929, fatores como o aumento da violência entre gangsters e os gastos públicos para se tentar fazer cumprir a lei, impulsionaram a discussão sobre a possibilidade de revogar a 18ª Emenda. A pá de cal sobre os argumentos econômicos a favor da Lei Seca foi a Quebra da Bolsa de Nova York em outubro de 1929, que jogou os Estados Unidos no período conhecido como a Grande Depressão. Os argumentos econômicos então viraram a favor da legalização da bebida, que geraria mais empregos, movimentaria a economia e aumentaria a arrecadação de impostos. Em 1932, Franklin Roosevelt (1933-1945) concorreu à presidência com uma plataforma de revogação da proibição, vencendo a eleição em 42 dos 48 Estados e obtendo 57,4% do total de votos.

Se você já assistiu a alguma aula sobre história da cerveja, deve ter ouvido falar que a Lei Seca dos Estados Unidos foi a responsável pela disseminação das American Lagers. O argumento, repetido por Pete Brown entre outros, é o de que “uma geração que não conhecia nada além de refrigerantes rejeitou o amargor das cervejas de estilo bávaro, populares nos Estados Unidos antes da Lei Seca, exigindo algo mais doce”. Mas a Lei Seca só poderia ter impactado significativamente sobre os paladares norte-americanos se, de fato, tivesse acontecido uma drástica redução no consumo de bebidas alcóolicas, o que não parece ter sido o caso, pelo que vimos acima. Quem tinha o hábito de consumir bebidas alcóolicas antes de 1920, deu seu jeito para continuar consumindo durante os 13 anos seguintes. E mesmo quem não ainda tinha idade para consumir bebidas alcóolicas em 1920 não parece ter tido dificuldades para conseguir um destilado ilegal durante a vigência da proibição. Principalmente se os seus pais fossem adeptos de um golinho.

Os motivos para o domínio do mercado pelas American Lagers deve ser procurado em outro lugar. O cenário de crise econômica da Grande Depressão, obrigou as cervejarias sobreviventes à proibição a apostar na produção de cervejas mais baratas de se produzir e mais fáceis de se vender. Portanto, cervejas mais leves, que alcançassem um público maior. Enquanto a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) desestruturou a produção de insumos e destruiu cervejarias na Europa, jogando o Velho Continente também em um cenário de crise econômica, o que ajudou as American Lagers a dominarem o mercado de cervejas também do outro lado do Atlântico.

Para terminar com uma curiosidade interessante: movimentos “pró-temperança” existiram também no Brasil, na virada do século XIX para o XX.  Mas, como explica Teresa Cristina de Novaes Marques, aqui a cerveja foi tratada pelos defensores da temperança como um mal menor, diante de bebidas destiladas de maior teor alcóolico, como a cachaça. Dessa forma, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, aqui os movimentos pró-temperança podem ter colaborado para fazer da cerveja a bebida preferida dos brasileiros. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BROWN, Pete. Prohibition. In: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 864-870.

DOMINGUES, Joelza Ester. Revogação da Lei Seca nos Estados Unidos. Ensinar História. Disponível em:  Revogação da Lei Seca nos Estados Unidos (ensinarhistoria.com.br)

HARFORD, Tim. Por que a Lei Seca, que faz 100 anos, foi um fracasso retumbante nos EUA. BBC News Brasil. 17 de janeiro de 2020. Disponível em: Por que a Lei Seca, que faz 100 anos, foi um fracasso retumbante nos EUA – BBC News Brasil

Lei Seca nos Estados Unidos. Wikipedia – a Enciclopédia Livre. Disponível em: Lei Seca nos Estados Unidos – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

LIMBERGER, Silvia Cristina. Estudo geoeconômico do setor cervejeiros no Brasil: estruturas oligopólicas e empresas marginais. Tese de doutorado. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2016.

MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. Cerveja e Aguardente sob o foco da temperança no Brasil, no início do século XX. Revista Eletrônica de História do Brasil. v.9, n.1, jan-jul 2007, p. 48-70. SILVA, Tiago Gomes da. Lei Seca, Institucionalismo e Federalismo. Anais do XVII Encontro de História da Anpuh-Rio – Entre o Local e o Global. Rio de Janeiro, 2016.


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História.

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