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Balcão do Jayro: “Onde há fumaça, há uma cerveja subestimada para harmonizar”

Aproveitando o assunto “fumaça” da coluna anterior (clique aqui), gostaria de fazer a seguinte declaração:

Cervejas defumadas, sejam elas Rauchbiers tradicionais ou mesmo versões modernas têm um potencial de harmonização incomensurável e, por muitas vezes, subestimado pelos próprios sommeliers.

Mas Jayro! São cervejas unidirecionais! Como pode?

De fato, mesmo a mais singela presença de maltes defumados costuma ser bem perceptível e pode, para a grande maioria, parecer enjoativo depois de alguns goles – com exceção do Viajante Cervejeiro, do Dr. Breja e deste que vos escreve, beberíamos litros de Rauchbiers bem contentes e até fizemos um webinar sobre cervejas defumadas em plena pandemia, com direito a entrevista com Matthias Trum, nada menos que a 6° geração de cervejeiros e donos da Schlenkerla.

Mas uma cerveja defumada bem-feita contém bem mais do que somente “bacon líquido”. O protagonismo é da fumaça, porém a base maltada –  que pode variar desde maltes claros, passando por maltes tostados, caramelos, até chegar em maltes torrados – está logo ali, abaixo da “cortina de fumaça”. E ela traz elementos interessantes para contribuir com a complexidade da cerveja. A levedura, no caso de Weizens e Porters defumadas, por exemplo, também trazem seu caráter para contribuir. Lúpulo geralmente é tímido no aroma e serve para equilibrar o dulçor da base maltada.

E tem algo a mais. Pelo menos, para mim, desperta algo ancestral. E não estou falando do fato de que parte das cervejas antes da revolução industrial e antes da invenção do coque provavelmente tinham algum caráter defumado presente devido a secagem do malte ao fogo (Não todas como às vezes se veem em histórias por aí, posto que o malte também poderia ser seco ao sol).

Para exemplificar o que quero dizer sobre ancestral, faço referência ao documentário “Cooked”, episódio “Fire”, disponível na Netflix e baseado no best seller “Cooked: A Natural History of Transformation” de Michael Pollan:

“Fogo é uma coisa poderosa. Acho que tem muito a ver com o fato de associarmos à comida. Pois somos a única espécie que cozinha. Nenhuma outra o faz. E quando aprendemos a cozinhar é que nos tornamos realmente humanos”

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“[…]. Cozinhar é algo diferente. Há algo que nos atrai para a cozinha. E acho que isso tem a ver com o fato de que todos temos lembranças intensas de sermos alimentados pelas nossas mães, nossos pais ou nossos avós. Esse ato de generosidade e amor ainda está fortemente presente em nossa memória.

Podemos supor que o primórdio do ato de cozinhar foi de uma carne, uma caça, sendo assada sobre uma fogueira. Parece factível, ao menos para mim. No próprio documentário, Pollan nos apresenta o antropólogo Richard Wrangham e sua “cooking hypothesis”, na qual o controle do fogo e do ato de cozinhar levou à criação do homem moderno. Cozinhar tornou o alimento muito mais biodisponível e levou ao aumento da massa encefálica, assim como nos deixou com mais tempo para outras atividades.

Retornemos às Rauchs. Quando falamos de fogo, falamos de fumaça, de sabores defumados e tostados, não estamos recrutando o que há de mais antigo em nossa memória sensorial, reptiliana, em nosso “DNA”? Ao degustar uma cerveja com sabores defumados, não estamos trazendo à tona essa memória ancestral?

Para além desse componente ancestral, o defumado complementa praticamente qualquer gastronomia que não tenha esse sabor em algum dos ingredientes ou no método de cocção, ou realça o sabor defumado do prato que já o contenha. A base maltada de uma cerveja defumada geralmente traz notas tostadas que ficam excelentes com pratos com bastante umami.

Cerveja defumada e lámen? Duvido que me apresentem harmonização melhor com lámen que essa.

Cerveja defumada e porco? Maravilhoso!

Cerveja defumada e ovos? Divino!

Cerveja defumada e beterrabas assadas? Super!

Feijoada, cassoulet, favada, churrascos e parrillas, sobremesas à base de chocolates, literalmente QUALQUER embutido, queijos de casca dura, pastas com molho como carbonara ou cacio e pepe, salmão defumado, gravlax, charutos – em especial o toscano, um charuto…defumado! – Pratos com bastante bottarga ou ovas…até mesmo caviar, eu desafiaria qualquer champanhe a acompanhar essa interação. Sinceramente, o champanhe não teria a menor chance.

E, como fala muito bem Matthias Trum, ao beber uma Rauchbier, estamos dando um gole na história da cerveja.

Saúde!


Jayro Neto é sommelier de cervejas e Mestre em Estilos, tendo sido campeão do Campeonato Brasileiro de Sommelier de Cervejas de 2019. É organizador de concursos da Acerva Paulista e juiz certificado pelo BJCP (Beer Judge Certification Program) com experiência nacional e internacional em concursos de cerveja. Também atua como conselheiro fiscal da Abracerva.

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