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Balcão do Jayro: “Não nos esqueçamos da acidez…”

…Da falta de tom. Da não polidez sincera. Não nos esqueçamos da diversidade dentro da superestimada normalidade… De onde existem as amarras invisíveis daquilo que é o esperado. Não nos esqueçamos dos sabores das diferenças.

A citação acima encontra-se impressa no rótulo da Pink Lemonade, uma Berliner Weisse com framboesa, amora e limão da cervejaria Dádiva – até procurei se a citação tinha outra autoria, mas não encontrei.

Confesso, sou um apaixonado por cervejas ácidas – sim, toda cerveja é ácida, mas estou me referindo a acidez sensorial pronunciada – mas não foi paixão à primeira vista, não. O primeiro contato com cervejas ácidas que me recordo foi em 2004, durante uma visita ao Museu da Cerveja em Bruxelas, na Grand-Place. Pouco me recordo do museu e da cerveja (que provavelmente era uma Gueuze), mas me lembro que era um tanto estranha. Não tive uma epifania com o beerhunter Michael Jackson em 1969 – quem gosta de cervejas belgas e não conhece esse episódio, recomendo o documentário[1]A conversation with Michael Jackson”. A afirmação de que Michael Jackson salvou as cervejas belgas da extinção não é um exagero.

Essa “paixão” ficou dormente por mais de 10 anos, quando fui ter novamente contato com uma Berliner Weisse (Berliner Kindl) no curso de sommelier, seguido pelas ácidas espontâneas belgas, e por aí fui me enveredando nesse caminho “da diversidade dentro da superestimada normalidade” e jamais retornei…

Do ponto de vista evolutivo, acidez é um indicador de possível toxidade de um alimento, portanto é marcador importante para a sobrevivência humana. Ao longo do desenvolvimento humano aprendemos que alguns ácidos, ao contrário da toxidade indicada, podem na realidade nos ajudar a preservar melhor alguns alimentos e eliminar ou inibir patógenos. Embutidos, queijos, cervejas, vinhos, conservas das mais variadas se utilizam desse meio ácido. Ao contrário do amargor, já temos contatos com substâncias ácidas desde que nascemos – o leite materno é ligeiramente ácido, com pH entre 6,6 – 6,8. Vale lembrar que a escala de pH, que vai de 0 a 14 é logarítmica, o que significa dizer que uma substância com diferença de 0,1 de pH para outra é 10 vezes mais ácida. Do ponto de vista fisiológico, a acidez é mais sináptica (junto com o salgado) já que despolarizam diretamente as células do corpúsculo da língua. Ou seja, os gostos ácidos e salgados são percebidos antes dos demais – esqueça o mapa da língua, estamos falando aqui de velocidade, não de localização.

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A acidez sensorial pronunciada facilita muito o trabalho de um sommelier quando se trata de possiblidades de harmonização. Temos possibilidades de trabalhar com diferentes tipos de acidez, sendo a lática, a acética e a cítrica as mais comuns. Segundo, por ser mais sináptica, quando propomos a interação de uma cerveja ácida com um prato salgado, cria-se aí um “jogo” de sensações, sendo que estamos falando somente de gosto, sem entrar no mérito dos demais elementos. Quando oferecemos uma cerveja ácida para acompanhar um prato ácido – um ceviche por exemplo – criamos a sensação de cancelamento, a acidez do prato e da cerveja parecem se amortizar e têm uma intensidade menor do que se fossem degustadas de forma apartada. E, por último, e não menos importante, quando acompanhada de uma sobremesa, a acidez faz contraponto a doçura como matéria e anti-matéria, provocando um aniquilamento incrível se as forças estiverem equilibradas. São raras as vezes em que não escolho a acidez como elemento estruturante de uma harmonização com sobremesas.

E por falar nisso, que tal harmonizar a Pink Lemonade com um flan de confeiteiro? Ou quem sabe com um pastelzinho de nata…

Saúde!


[1] https://www.youtube.com/watch?v=ZYSnoZqmNMc


Jayro Neto é sommelier de cervejas e Mestre em Estilos, tendo sido campeão do Campeonato Brasileiro de Sommelier de Cervejas de 2019. É organizador de concursos da Acerva Paulista e juiz certificado pelo BJCP (Beer Judge Certification Program) com experiência nacional e internacional em concursos de cerveja. Também atua como conselheiro fiscal da Abracerva.

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