fbpx
matisse

Balcão da Matisse: A cerveja artesanal na vila global

O meu avô era sapateiro, tinha uma pequena lojinha/fábrica, que ele chamava de “oficina” e que, na verdade, era uma sapataria. Era só ele e um ajudante, o Chico, rapaz simples, que nunca aprendeu a fazer sapatos, nem se interessava, mas era uma pessoa cativante, conversava com todo mundo e sabia tudo sobre sapatos, os modelos, os materiais. Sabia até tirar as medidas dos pés. Ele explicava com detalhes o que era uma “meia sola a prego”. Por mais que meu avô insistisse, ele não metia a mão na massa para fazer um sapato. Parece que gostava mesmo era de tagarelar e poder andar de um lado para o outro, sem ter de ficar horas sentado em um banquinho trabalhando uma peça.

Meu avô, por outro lado, era uma pessoa séria, simpática, mas muito centrada, afinal, tinha de criar 13 filhos trabalhando na oficina de dia e fazendo um bico como garçom à noite. A “Oficina do seu Pedro”, como era conhecida na cidade, vivia cheia. A maior parte estava ali só para conversar mesmo e para dar palpite.

Quando aparecia um cliente, meu avô se desligava de todo o resto, ouvia atentamente, dava sugestões e quando chegava à definição do que seria o modelo, a cor e os materiais, partia para tirar as medidas dos pés – dos dois, é claro, porque um pé é diferente do outro e os sapatos também têm de ser; não é só uma questão de ser direito e esquerdo, cada um com sua medida.

Lembro também que minha mãe me levava na costureira para tirar medidas para as minhas roupas e para escolher o tecido. Me lembro de colocar o tecido na pele e não gostar da sensação. “Então esse tecido não vai servir”, dizia ela pacientemente. “Que tal esse outro?”. Mais tarde, tive de me acostumar com a onda prêt-à-porter e aquela sensação de tirar as medidas para fazer uma roupa ou um sapato. A expectativa para ver como ficou e a alegria de finalmente receber aquele produto são só lembranças do passado.

Ofícios como estes tiveram origem na Idade Média, quando as atividades artesanais atendiam às necessidades de um feudo. Geralmente, um artesão se fixava em uma propriedade oferecendo os seus serviços em troca da proteção e dos recursos disponíveis na propriedade feudal. Os portadores dessas habilidades tinham um raio de ação limitado.

Mais tarde, à medida em que as cidades cresceram, esses artesãos se deslocaram para as cidades e puderam atender uma ampla gama de consumidores. Assim surgiram as chamadas oficinas, em que o artesão tinha a propriedade da matéria-prima e das ferramentas necessárias à produção, ganhando maior autonomia. Acho que vem daí o nome “Oficina do seu Pedro”.

O dono de uma oficina era conhecido como o mestre-artesão. Apesar de dono, também ocupava o seu tempo participando do processo de fabricação e preparando seu aprendiz para, mais tarde, ele virar um mestre-artesão. Não foi o caso do Chico.

Publicidade

A produção de cerveja, que então estava sob o domínio dos conventos, também foi migrando para as cidades e começaram a surgir artesãos cervejeiros, trabalhando para grandes senhores e até para abadias e mosteiros. No entanto, com o aumento do consumo da bebida, os artesãos das cidades começaram também a produzir de forma independente.

O imperador Carlos Magno foi o primeiro a reconhecer os cervejeiros como artesãos especializados, ao decretar um conjunto de regras que consolidou a cerveja como mercadoria no Capitulare de villis.

Desde o fim da Idade Média, o artesanato adquiriu esse status de produção independente, em que o produtor possui os meios de produção (instalações, ferramentas e matéria-prima) e pode, sozinho, com a família ou com ajudantes, realizar todas as etapas da produção, tendo a sua habilidade como diferencial.

Depois veio a revolução industrial e a produção em massa. Grandes corporações assumiram o papel dos artesãos, que resistiram por muito tempo – como foi o caso do seu Pedro. E resistem ainda, vendendo seus produtos localmente em lojas próprias ou de conhecidos, nas feiras, eventos e exposições, incentivando os compradores a consumirem um produto local, mais personalizado, de melhor qualidade e, às vezes, acompanhado de um bom papo, como se tivesse encontrado o Chico na oficina.

Mas uma nova mudança parece estar acontecendo. A tecnologia e a logística evoluíram muito e aproximaram as pessoas. Hoje fico impressionado quando alguém de Curitiba ou de Pitangueiras (SP) entra em contato pelo meu WhatsApp querendo saber mais sobre as minhas cervejas. Aí se inicia um bom papo, falamos sobre os estilos de cada cerveja e como a Matisse tem se especializado em combinar ingredientes pouco comuns a estilos tradicionais. Sempre surge a pergunta sobre o que é uvaia e grumixama (frutas que utilizamos) ou alguém que diz “uvaia é a minha fruta de infância e nunca mais ouvi falar dela”.

No final, quando a pessoa compra, ela sabe exatamente o que está levando e o que esperar daquela cerveja, qual a forma correta de degustar, que sabores procurar, com que combinar e muito além do produto em si, a história por trás daquele rótulo, o porquê do nome, a arte que o inspirou, de onde surgiu aquela ideia. Às vezes, sinto que a pessoa saiu mais feliz por ter comprado aquela cerveja do que eu por ter vendido – e com certeza uma nova amizade se iniciou. É como alguém que fosse na sapataria encomendar um sapato e não sairia de lá sem ficar amigo do meu avô e do Chico.

Claro que isso não é possível com uma grande cervejaria, mas as pequenas artesanais podem perpetuar o verdadeiro espírito do artesanato. Só que agora a sapataria do seu Pedro, embora permaneça pequena, pode atender a todo território nacional e até internacional, como uma vila global.



Mario Jorge Lima é engenheiro químico e sócio-fundador da Cervejaria Matisse

0 Comentário

    Deixe um comentário

    Login

    Welcome! Login in to your account

    Remember me Lost your password?

    Lost Password