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Balcão Xirê Cervejeiro: Qual o papel do patrocinador quando o patrocinado comete uma violação de direitos

Olá, seguidores/as e leitores/as do Guia da Cerveja, estou de volta ao balcão Xirê Cervejeiro e, desta vez, quem nos guiará é uma pergunta franca: qual é o papel de patrocinadores quando há notícia envolvendo casos de trabalho análogo à escravização, como o que ocorreu com o Lollapalooza?

Estamos no mês de maio e no último dia 13 completaram 135 anos do fim da Instituição Jurídica da escravização no Brasil. A Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, continha apenas dois dispositivos, são eles:

Art. 1º É declarada extincta desde a data d’esta Lei, a escravidão no Brazil.

Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.

Lei 3.353, de 13 de maio de 1888

Como se observa dos artigos supracitados, não houve nenhuma menção às políticas públicas direcionadas àquele grande contingente populacional que foi jogado à própria sorte, sem trabalho, sem moradia, sem acesso à saúde, à educação. E os danos pela falta de acesso aos bens materiais, bens esses que os escravizados produziam e foram a base do acúmulo capital da sociedade brasileira, observamos na atualidade.

Você pode já está se perguntando: Sara, como o fim da escravização de pessoas negras no Brasil se conecta com o mercado cervejeiro?

Assim, como Brás Cubas, caro leitor, me reporto a você e peço que faça o exercício de analisar as relações sociais, econômicas, de trabalho e, claro, raciais no Brasil.

Observe a realidade plasmada e veja quais são as cores dos corpos resgatados em situação análoga à escravidão no Brasil nos últimos anos.

Nos últimos meses, pipocaram nas mídias notícias de que trabalhadores estavam exercendo suas atividades laborativas em situação análoga à escravização.

De norte a sul do país, de empresas de vinho a açúcar, até festival de música, foram acusados de terem nos seus quadros, pessoas exercendo atividades laborativas em situação degradante e inumanas.

A maioria dessas empresas contrataram os trabalhadores de forma indireta, através de prestadores de serviços, a fim de evitar obrigações trabalhistas, alguns foram contratados na informalidade. O que essas empresas esquecem é que, juridicamente, respondem solidariamente.

A lei permite a contratação de mão-de-obra através da terceirização. No entanto, o direito do trabalho que regula a matéria traz as responsabilizações não só à empresa terceirizada, mas a que terceirizou o serviço. Caso haja inadimplemento por parte do empregador, busca-se a responsabilidade subsidiária do tomador de serviço. É o que preconiza a Súmula nº. 331, inciso IV do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que trata sobre o Contrato de Prestação de Serviços/Legalidade, que traz a previsão da responsabilidade subsidiária da terceirização da mão-de-obra.

Isto posto, trago à memória um recente caso envolvendo uma gigante do setor de entretenimento e uma grande marca de cerveja que realizava o patrocínio, no caso em comento, o festival Lollapalooza e a Budweiser.

Não é a primeira vez que o Lollapalooza, festival internacional de música que ocorre no Brasil, é acusado de ter no evento trabalhadores em situação análoga a escravização. Segundo noticiado, 5 trabalhadores foram resgatados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em situação de trabalho degradante que se assemelha ao trabalho análogo à escravização:

“Segundo informações da pasta, os 5 funcionários trabalhavam como carregadores de material durante o dia, com uma jornada de trabalho de 12 horas, e eram obrigados a dormir nos pontos de estoque de bebidas dentro do autódromo de Interlagos –onde o festival é realizado– para fazer a segurança do local. Todos moravam próximos ao local de trabalho, no bairro do Grajaú.”

Não é a primeira vez que o festival se utiliza dessa prática. Em 2019, utilizaram da mesma prática, contrataram pessoas e pagavam R$ 50,00 por 12 horas de trabalho para desmontarem os palcos. Houve uma comoção social à época e, anos depois, novas denúncias surgiram. Ou seja, pelo visto, nada mudou.

O festival é um dos mais disputados por empresas que querem aproveitar a audiência para vender suas marcas e seus produtos. Em 2023, mais de 20 empresas de renome patrocinaram o festival. No campo da bebida, a Budweiser é a patrocinadora oficial do evento.

Os trabalhadores resgatados, este ano, estavam cuidando das bebidas que seriam vendidas no evento.

E a pergunta que fica: qual a importância do posicionamento público das marcas que são patrocinadoras de eventos, contra atos que violam os direitos humanos como o flagranteados no Lollapalooza?

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Cobrar responsabilidade pública e ações é uma forma de demonstrar que não compactua com práticas de violações de direitos. Quando você patrocina um evento, você é parte dele. Ao colocar sua marca em um evento que possui histórico de violação de direitos e sem se posicionar publicamente, indiretamente você poderá estar concordando com essa prática.

Após as notícias veiculadas em todas as mídias de que no festival Lollapalooza  foram resgatados trabalhadores em situação análoga à escravização junto ao setor de bebidas, o que gostaria de ouvir da marca era: Budweiser firma Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o festival Lollapalooza contra a utilização de pessoas exercendo trabalho análogo à escravização, mas o que lemos na mídia foi: Budweiser distribui Bud Zero às pessoas que foram assistir aos shows no Lollapalooza. A mensagem que passa é que pessoas estavam sendo premiadas dentro de um festival que violou direitos humanos. É hora de educar as pessoas e mostrar que podemos ser melhores.

Dias atrás, disseram que eu jamais tocaria em temas sensíveis como esse por ser patrocinada pela Ambev. Eu não sou. Aliás, já fui solicitada por algumas pessoas do meio cervejeiro a não trabalhar questões dessa natureza porque as empresas do meio cervejeiro me isolariam. Não parei e o que elas disseram se confirmou. Mas tratar sobre temas como o que trouxe aqui não é para polemizar, mas, sim, nos levar a refletir sobre o que queremos enquanto sociedade.

Faço parte da maior parcela da população brasileira que por quase 400 anos foi escravizada e mais de 130 anos depois do fim da escravização jurídica, continua sofrendo todo tipo de sortilégios. Em função disso, não dá para ficar em silêncio diante de situações como essa. Até porque, o silêncio não nos protege, já nos advertiu Audre Lorde.

Aqui, não se trata de demonizar uma marca, mas perguntar qual é o real comprometimento com situações de violações de direitos, qual é o real comprometimento com a população negra, uma vez que é essa população a mais atingida.

Enquanto nos Estados Unidos, país em que a população negra não chega a 15%, um estado como a Califórnia está se preparando para pagar indenizações às pessoas negras em razão da escravização, no Brasil, onde o contingente negro (pretos e pardos), segundo o IBGE, é mais de 56% da população, vemos, ao invés de reparação histórica, empresa colaborando com a reificação dessa população.

Às empresas do setor: vamos conversar, vamos promover mudanças, vamos trabalhar de forma honesta o letramento racial crítico?

Para finalizar a nossa conversa e encerrar o nosso papo no Balcão Xirê Cervejeiro, deixo dicas de leitura para que possamos compreender e mudar essa realidade perversa que nos atravessa:

– Um Pé na Cozinha, de Thaís Sant´anna Machado, da editora Fósforo, e Ventres Livres?, da Editora Unesp

Por hoje é só.


Fontes:

https://www2.camara.leg.br/legin/fed/leimp/1824-1899/lei-3353-13-maio-1888-533138-publicacaooriginal-16269-pl.html
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2023/03/23/interna_nacional,1472771/trabalhadores-no-lollapalooza-estavam-em-regime-analogo-ao-escravo.shtml
https://www.poder360.com.br/brasil/trabalho-encontra-situacao-analoga-a-escravidao-no-lollapalooza/
https://jaquesoliver.jusbrasil.com.br/artigos/351057494/responsabilidade-solidaria-e-subsidiaria-das-empresas-grupo-economico-e-sucessao-de-empregad
https://calmatters.org/california-divide/2023/05/reparations-payments-california/


Sara Araujo é graduada em Ciências Jurídicas, pela Instituição Toledo de Ensino Bauru (SP). Atua na área de execução penal, sendo graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (PR) e pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica pelo Instituto Pretos Novos do Rio de Janeiro. É sommelière de Cervejas pela ESCM/Doemens Akademie e criadora e gestora do @negracervejassommelier

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