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Do apagamento até a Flip e a cerveja: quem é Maria Firmina?

Obra-prima, Úrsula dá, pela primeira vez, protagonismo a personagens negros na literatura brasileira

Sob diferentes olhares, Maria Firmina dos Reis não possui uma trajetória comum dentro da sociedade ou da literatura brasileira. Mas tem o apagamento tão comum aos negros presente em sua história. Por isso, há poucos registros da escritora maranhense, nascida em 1825, e que carrega dois marcos: a de ser a primeira autora negra brasileira e a de ter escrito um livro de teor abolicionista e que dá voz aos escravizados.

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Tão importante, mas que, ao mesmo tempo, foi pouco lida, ficando praticamente esquecida por mais da metade do século XX. Hoje, porém, é homenageada em grandes festivais literários e ganhou o seu próprio rótulo de cerveja, feito pela Dutra Beer.

Entre 23 e 27 de novembro, poucos dias depois da celebração do Dia Nacional da Consciência Negra, que neste ano ocorre no domingo, Maria Firmina será a autora homenageada da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty (RJ). Seu destaque no principal evento literário do país, que contará com inúmeras mesas de debate dedicadas a ela, resgata uma trajetória que superou a tentativa de apagamento para se consagrar como uma das grandes vozes brasileiras na luta contra a escravidão e o racismo.

Ao escrever Úrsula, a sua principal obra, em 1859, Maria Firmina ficaria marcada por pioneirismos. Mas não apenas por eles. Afinal, ao apresentar um triângulo amoroso entre personagens negros que questionam o sistema escravocrata, a autora deu a eles um ineditismo de protagonismo na literatura brasileira. E ainda escancarou a crueldade dos senhores de escravos, representados por Fernando, o vilão da história.

“A leitura de sua obra tem a virtude de olhar para pessoas negras, escravizadas ou libertas, como pessoas, antes de tudo, dotadas de sensibilidade, capacidade de amar e de odiar, esperança e tudo o mais. Há três figuras notáveis no romance nessa condição”, diz Luís Augusto Fischer, escritor e professor do Instituto de Letras da UFRGS.

Para entender mais sobre quem produziu obra com tantos ineditismos e marcos, é necessário olhar para o pouco que se sabe da trajetória além dos livros de Maria Firmina, como professora concursada no Maranhão e sua vida intelectual, com a luta antiabolicionista registrada em textos na imprensa local. Mas também especular sobre possíveis leituras de autores estrangeiros que podem tê-la influenciado.

“Parece claro que ela tinha na alma os modelos narrativos do romance francês, como ‘Paulo e Virgínia’, de 1788, de imenso sucesso por muitas décadas, assim como Alexandre Dumas, com as aventuras arrebatadoras de um ‘Conde de Monte Cristo’, de 1844, eu imagino. Deverá ter lido também algo do romance inglês, quem sabe algum das irmãs Brontë, como o ‘Morro dos Ventos Uivantes’, de 1847. E é bastante provável que tenha lido ‘A Cabana do Pai Tomás’, de Harriet B. Stowe, lançado nas em 1852 e logo traduzido para várias línguas, inclusive o português”, comenta Fischer.

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Se apresentou importantes ineditismos em Úrsula, Maria Firmina foi além das suas obras. Em um gesto que pode ser considerado revolucionário dentro de um contexto histórico, realizou ação educacional emblemática ao fundar uma escola com aulas gratuitas para turmas mistas (com homens e mulheres) no século XIX.

O resgate de Maria Firmina
Sua trajetória e obra, porém, ficaram esquecidas por décadas, em uma inviabilização que tem muito em comum com a trajetória dos negros brasileiros. Foi resgatada apenas nos anos 1960, quando a sua obra foi recuperada em um sebo do Rio de Janeiro por um historiador.

“Depois de lê-la agora, no século XXI, a gente se pergunta, sem encontrar resposta pela impossibilidade até de pensar nisso, que porém se expressa numa pergunta importante: o que teria acontecido à produção literária brasileira (e ocidental) caso sua obra tivesse circulado bem, a partir de sua publicação?”, questiona Fischer, apontando que se tivesse sido propagada, a obra de Maria Firmina poderia ter influenciado grandes autores e mesmo a história brasileira.

“Quantas novas possibilidades de consideração sobre a subjetividade de pessoas escravizadas teriam sido possíveis? A própria campanha abolicionista, em sentido amplo (não apenas aquela dos anos 1880 finais), que rumos teria tido? Como ela teria sido lida por Machado de Assis e Lima Barreto, para citar os dois mais importantes romancistas, talvez não casualmente ambos negros, da capital de então?”, acrescenta.

A partir de 2017, ano do seu centenário de morte, Maria Firmina amplia seu público, que certamente tem ganhado novos adeptos em 2022. Afinal, em maio, antes mesmo da Flip, também foi escolhida para ser uma das homenageadas entre as cervejas literárias do Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, realizado na cidade do interior mineiro. Naquela oportunidade, a Dutra Beer produziu uma Ginger Beer com o nome de Maria Firmina.


As homenagens, assim, podem ser vistas como tentativas de reconectar o Brasil com a sua história e diversidade, em muitos casos marginalizada.

Ela entrou na corrente sanguínea da literatura, na escola, na universidade, na crítica, para nunca mais sair. A gente talvez ainda demore para poder decantar tudo que sua obra significa, porque a perplexidade sobre sua invisibilidade ainda é maior do que o debate produtivo. Mas é certo que a história do romance no século XIX, o século em que o romance aparece e se firma no Brasil, muda a partir dela

Luís Augusto Fischer, escritor e professor do Instituto de Letras da UFRGS

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