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Balcão do Profano Graal: A cerveja no Brasil no alvorecer da República

Salve nobres,

Dois meses atrás, por ocasião da comemoração dos 200 anos da Independência do Brasil, falei aqui sobre como era o mercado de cerveja no Rio de Janeiro no começo do século XIX, em 1822. Esse mês de comemoração da Proclamação da República é uma boa ocasião para olharmos para o mercado de cerveja no Brasil, no final do século XIX, em 1889.

Muita coisa mudou ao longo de 67 anos de Império. A indústria da cerveja se instalou e se desenvolveu no país. Ainda não é possível afirmar com certeza o quão disseminado já estava o consumo de cerveja. Mas, até o momento, foi possível identificar o funcionamento de aproximadamente 98 fábricas de cerveja entre 1831 e 1889 no Brasil. Que fabricavam uma grande gama de estilos de cerveja, principalmente de alta fermentação. E que chegaram mesmo a ganhar premiações nacionais e internacionais, como no caso da fábrica de cerveja Independência Brazileira, do Rio de Janeiro, premiada nas Exposições Nacionais da Indústria de 1866 e 1881 e nas Exposições Internacionais de Antuérpia (1885) e Paris (1878).

Entre 1888 e 1889, a abolição da escravidão e a Proclamação da República iam mudar a cara do país. E a criação de duas cervejarias iam mudar a cara do mercado de cerveja brasileiro.

No ano de 1888, o cervejeiro alemão Louis Bücher, natural da cidade de Wiesbaden, conhece o empresário brasileiro Joaquim de Salles. Chegado em São Paulo em 1868, Bücher era proprietário, desde 1870, da pequena Fábrica de Cerveja Gambrinus, localizada na rua 25 de Março, nº 2. E Salles era, desde 1886, um dos sócios da Companhia Antarctica Paulista, localizada no bairro da Água Branca, que se ocupava da fabricação de gelo, banha, preparação de presuntos e outros produtos de origem suína. Naquele momento, a Companhia de Salles atravessava uma crise devido à escassez no fornecimento de porcos e tinha  uma capacidade ociosa de produção de gelo. Bücher, por outro lado, tinha o projeto de produzir cervejas de baixa fermentação, para o que necessitava justamente de um maquinário de refrigeração. Os dois, então, firmaram uma parceria financeira. A indústria de Salles muda de nome para Antarctica Paulista – Fábrica de Gelo e Cervejaria. A produção de cerveja começou no ano seguinte e o primeiro anúncio da companhia apareceu no jornal A Província de São Paulo (atual Estadão) em março de 1889: “Cerveja Antarctica em garrafa e em barril – encontra-se à venda no depósito da fábrica à Rua Boa Vista, 50”.

No mesmo ano de 1888, na capital do Império, o engenheiro suíço chegado ao Brasil em 1879 Joseph Villiger cria uma pequena fábrica de cervejas de alta fermentação, localizada na rua de Bom Jardim (atual Marquês de Sapucaí), número 128, esquina com Travessa Dona Rosa. Se chamava Manufactura de Cerveja Brahma Villiger & Cia. A escolha do nome é desconhecida e controversa. Segundo uma versão, deve-se à simpatia do cervejeiro suíço pela cultura indiana. Outra versão fala da sua admiração pelo compositor Johannes Brahms. Mas é provável também que seja uma homenagem ao inventor da válvula de chope, o inglês Joseph Bramah (1748-1814). Mas Villiger não ficou à frente do negócio por muito tempo, vendendo a fábrica em 1894 para o cervejeiro alemão natural de Nuremberg, recém-chegado no Brasil, Georg Maschke. Maschke promoveu a conversão tecnológica da fábrica para a produção de cervejas de baixa fermentação em escala industrial, o que requereu elevados investimentos em equipamentos de refrigeração, tubulações, tanques e geradores de energia.

Como explica Teresa Cristina de Novaes Marques, o desenvolvimento das tecnologias de refrigeração e a produção de cervejas de baixa fermentação em escala industrial (grandes quantidades, que podiam ficar armazenadas por muito mais tempo do que as cervejas de alta fermentação) marcam a transição de uma produção artesanal para uma produção industrial de cerveja, viabilizando a produção de cervejas de baixa fermentação inclusive em países tropicais como o Brasil. E o pioneirismo de Brahma e Antarctica na produção desse tipo de cerveja, em um mercado dominado pelas cervejas de alta fermentação, foi o que permitiu o rápido e espantoso crescimento e consolidação daquelas duas cervejarias.

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Segundo dados do IBGE, em 1907, a Brahma era já a maior cervejaria do Brasil. O seu valor declarado de produção ultrapassava o da Antárctica em 57,5% e o número de operários era 62% maior. Naquele ano, Brahma, Antarctica e a Fábrica de Cerveja Paraense (fundada em 1905 e também dedicada à produção de cervejas de baixa fermentação) já controlavam 50% do mercado de brasileiro de cervejas, 62,9% do capital, 68% da potência instalada e 47,3% da mão-de-obra empregada. O Inquérito Industrial de 1912 mostrou que apenas Brahma e Antarctica possuíam mais de 500 operários. Em 1903, as duas cervejarias fizeram a primeira tentativa de formação de um cartel nacional, com a combinação de critérios para expansão da capacidade de produção e estabelecimento de preço das cervejas, com o objetivo de conter a concorrência entre as cervejarias de baixa fermentação.

Essa rápida expansão fez com que Brahma e Antarctica logo pudessem eliminar as suas principais concorrentes no mercado. Em 1904, a Brahma se funde com a Cervejaria Teutônia, de propriedade da Preiss, Haussler e Cia., localizada no município de Mendes (RJ). E, em São Paulo, a Antarctica adquire, em 1905, a Fábrica de Cerveja Bavária, de Henrique Stupakoff e Cia. Era o início de uma longa série de aquisições, fusões e incorporações que irá durar até o final da década de 1960, e que irá dar às duas empresas o monopólio do mercado de cerveja brasileiro ao longo do século XX, retirando do mercado as cervejarias de alta fermentação, menores e menos capitalizadas, e promovendo uma uniformização do gosto do consumidor de cerveja, que ainda hoje marca a cultura cervejeira do brasileiro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COUTINHO, Carlos Alberto Tavares. Antarctica Paulista / Fábrica de Gelo e Cervejaria – Antarctica Paulista / Companhia Antarctica Paulista S.A. (até 19220). Cervisiafilia: a história das antigas cervejarias. Disponível em: A História das Antigas Cervejarias: Antarctica Paulista / Fábrica de Gelo e Cervejaria – Antarctica Paulista / Companhia Antarctica Paulista S.A. (até 1920) (cervisiafilia.blogspot.com)

COUTINHO, Carlos Alberto Tavares. Fábrica de Cerveja Paraense. Cervisiafilia: a história das antigas cervejarias. Disponível em: A História das Antigas Cervejarias: Fábrica de Cerveja Paraense (cervisiafilia.blogspot.com)

Companhia Antarctica Paulista. Wikipedia. Disponível em: Companhia Antarctica Paulista – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

KÖB, Edgar. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 161 (409), 2000, p. 29-58.

LIMBERGER, Silvia Cristina. Estudo geoeconômico do setor cervejeiros no Brasil: estruturas oligopólicas e empresas marginais. Tese de doutorado. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2016.

MARCUSSO, Eduardo Fernandes. Formação sócioterritorial da cerveja no Brasil. In: Da cerveja como cultural aos territórios da cerveja: uma análise multidimensional. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Geografia da UnB. 2021, p. 155-219.

MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. A cerveja e a cidade do Rio de Janeiro: De 1888 ao início dos anos 1930. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.

MARQUES, Teresa Cristina de Novaes; MELO, Hildete Pereira de; ARAÚJO, João Lizardo de. Raça e Nacionalidade no Mercado de Trabalho Carioca na Primeira República: o caso da Cervejaria Brahma. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro. Vol 57, nº 3, 2003, p. 535-568.


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História.

2 Comentários

  • carlos alberto Tavares coutinho Reply

    15 de novembro de 2022 at 09:28

    Parabéns, meua amigo!
    Mais um excelente texto que infelizmente não faz parte dos livros de História do Brasill.
    Você, em poucas palavras vai fundo no assunto.
    Parabéns

    • Sergio Reply

      15 de novembro de 2022 at 10:42

      Salve nobre!
      Muito obrigado pelos elogios sempre tão gentis.
      Suas pesquisas foram de grande ajuda na elaboração da coluna desse mês.
      Abraços

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