Resistência e inclusão: Filho de quilombolas empreende com cervejas acessíveis
Historicamente, os quilombos no Brasil representaram centros de resistência para os escravizados que fugiam da opressão. Ao longo dos séculos, esses refúgios evoluíram para comunidades, enraizando-se por meio de práticas culturais e ancestrais. Hoje em dia, embora seus espaços nem sempre sejam respeitados, esses locais persistem, abrigando não apenas tradições resilientes dos quilombolas, mas também paixões, como as cervejas.
É esse o caso de Charles Pinheiro, criado no Quilombo Tocoiós de Minas, no Vale do Jequitinhonha, região nordeste de Minas Gerais, que teve seu primeiro contato ainda jovem com a cerveja, pois seu pai tinha um bar. Isso alimentou a curiosidade por novos sabores no filho de quilombolas e despertou, posteriormente, sua paixão pelas cervejas artesanais.
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“Sempre que saía [do quilombo], procurava experimentar uma cerveja diferente. Minha fascinação pelo processo de fabricação de cerveja sempre foi forte. No quilombo, não tive a chance de aprender sobre isso, e acredito que, por estar distante, seja mais difícil encontrar uma fábrica. Mas saí de lá já apreciando cerveja, provando diversos tipos. E foi em Brasília que conheci a cerveja artesanal”, compartilha Pinheiro.
Com suas raízes quilombolas e sua trajetória, ele se envolveu com as cervejas na capital federal, primeiro como vendedor. Depois, em 2021, concretizou seu sonho de possuir uma cervejaria própria, a Seu Joca. Nela, carrega suas raízes, baseando-se na representatividade negra, na busca por inclusão e no respeito à cultura.
A pequena marca artesanal de Brasília entrou no mercado com uma proposta clara: tornar as cervejas artesanais mais acessíveis aos consumidores menos familiarizados com esse tipo de bebida, nas palavras do filho de quilombolas.
“Se você nunca experimentou uma cerveja artesanal, assim como eu nunca havia feito, provavelmente não apreciará uma IPA. Decidimos fazer cervejas populares e de fácil consumo. Queremos atrair as pessoas para experimentar e apreciar, mostrando que cervejas artesanais não se resumem apenas às mais amargas. Uma vez que alguém adentra esse mundo cervejeiro, dificilmente voltará atrás”, diz Pinheiro.
Essa abordagem levou a Seu Joca, em seus poucos anos de existência, a focar em cervejas puro malte e na APA, representando 80% e 20% da produção, respectivamente, com uma média mensal de 3,5 mil litros de cerveja. E além das vendas diretas na cervejaria, também as fornece para bares locais.
Esse êxito já está gerando planos para expandir a produção, incluindo a aquisição de mais um fermentador. “Nossa cerveja premium tem sido muito procurada, e isso também ajudará em colaborações, já que a demanda ultrapassa nossa capacidade atual de produção”, conclui.
Uma dessas colaborações já saiu do papel, sendo a AfroLager, lançada em julho. Nesse caso, a Seu Joca se uniu ao moçambicano Aninho Irachande, da Cervejaria Dona Maria, e a Paulão Silva, da Brassaria Brasília, com o intuito de ampliar a representatividade no setor e expandir o acesso às suas criações. Essa parceria deu origem à primeira cerveja colaborativa da Seu Joca, a AfroLager, do estilo Hop Lager e com 5,2% de teor alcoólico.
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A ideia era criar uma cerveja de fácil consumo, mas que também intrigasse os consumidores habituais de artesanais, devido à utilização de lúpulos da África do Sul. Embora tenha sido lançada em um pequeno lote, há planos para produções maiores, destinadas a outras regiões do Brasil e locais que compartilhem da mesma visão dos parceiros de criação da AfroLager.
A base para empreender
Se a Seu Joca surgiu da curiosidade de Pinheiro pela diversidade cervejeira além dos limites do quilombo, sua força empreendedora e visão inclusiva têm raízes profundas no Distrito Quilombola de Tocoiós de Minas.
A comunidade de Tocoiós de Minas, que remonta às primeiras décadas do século XX, recebeu esse nome em referência a uma tribo indígena que habitava o local, os Tocoiós. Em maio de 2013, a Fundação Cultural Palmares reconheceu a comunidade como remanescente de quilombo, passando a ser denominada Distrito Quilombola de Tocoiós de Minas.
A economia da região gira em torno do artesanato em algodão, crochê e madeira, além da produção de queijos, doces e mel de abelha, práticas enraizadas em gerações passadas.
“Minha mãe é artesã e trabalha com artesanato. Ficamos felizes quando veem e reconhecem nosso trabalho, mas é triste que muitos digam que o Vale do Jequitinhonha só agora está produzindo artesanato. Isso não é verdade. Sempre houve artesanato, aguardente produzida em alambiques, rapadura… As coisas sempre foram feitas aqui. Meu avô fazia, minha bisavó também, mas ninguém dava valor. Agora, com tanto esforço, as pessoas finalmente estão prestando atenção”, relata.
Refletindo sobre sua infância no quilombo, Pinheiro lamenta que, devido à falta de conhecimento, os residentes não compreendiam que as dificuldades enfrentadas eram resultado das diferenças sociais, culturais, religiosas e históricas sofridas pelo povo negro na região. “Não diria que fomos esquecidos, mas sempre fomos deixados de lado em comparação a outros lugares”, critica.
Conversas com seus pais e avós também revelaram que eles não reconheciam, em sua época, as dificuldades enfrentadas no quilombo como resultados de desigualdades sociais, culturais e históricas. “Existe muita coisa por trás. Embora saiba que a vida foi difícil, meu avô e bisavô falavam sobre isso, especialmente devido à falta de dinheiro. Minha mãe queria estudar, mas não pôde devido aos filhos. Quando juntamos essas histórias, tudo começa a se encaixar”, observa Pinheiro.
Quilombos no Brasil: Redutos de resistência
No último mês, o IBGE divulgou os primeiros números referentes à população quilombola no Brasil e dados sobre seus domicílios, indicando a existência de 1,3 milhão de quilombolas em 1.696 municípios, representando 0,65% da população brasileira. No entanto, mais de 87% desses indivíduos residem fora das 494 áreas oficialmente designadas para comunidades tradicionais com raízes em quilombos.
Os quilombolas brasileiros ainda enfrentam diversos desafios em 2023, como a intolerância religiosa, já que muitas dessas comunidades têm laços profundos com religiões de matriz africana.
“Trata-se do modo de vida nos quilombos, das tradições antigas, das práticas do passado. Acredito que isso ainda seja relevante nas comunidades, pois a Igreja Católica [e outras religiões] tende a se impor e ocorre um choque. Em comunidades menores, outras religiões ainda não foram aceitas. Essa continua sendo uma questão tabu e algo que precisamos discutir mais. Os quilombos continuam sendo um bastião de resistência”, afirma.
Há também desafios relacionados ao racismo, à falta de acesso a políticas públicas e ao direito à terra e moradia. Pinheiro afirma que a relação entre a sociedade e os quilombos ainda é baseada em diferenças, embora muitas comunidades quilombolas tenham conseguido melhorar as condições de vida de seus moradores.
“Acredito que hoje as prefeituras e órgãos próximos aos quilombos estão dando mais espaço para essas comunidades. Elas estão ganhando visibilidade, mas frequentemente há interesses por trás, como a prefeitura ganhando mais recursos do governo estadual, por exemplo. Isso traz benefícios e é positivo, mas também me entristece, pois só acontece por esses motivos. Mas, e se não houvesse benefícios? Como seria então? É um desabafo, e deixo essa pergunta no ar”, reflete.
Essa resistência e luta por uma sociedade mais justa, igualitária e que respeite as diferenças permanecem acompanhadas por violências contínuas. O recente assassinato de Maria Bernadete Pacífico, líder do Quilombo Pitanga dos Palmares na Bahia, é um exemplo desse cenário. Quase seis anos antes, o filho de Mãe Bernadete, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, também foi assassinado.
Um levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas revelou que, na última década, pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas dentro de quilombos, muitas vezes por armas de fogo.
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