fbpx
breaking news New

Entrevista: Cerveja com planta ‘exótica’ vira símbolo de resistência no Capão

Chef Edson Leite, do Gastronomia Periférica, criou cerveja com o uso de uma Planta Alimentícia Não Convencional na sua receita

A cerveja artesanal e a gastronomia são apenas dois dos setores que escancaram a desigualdade e a exclusão social no Brasil. Mas, nos últimos anos, iniciativas em ambos os segmentos ganharam força na tentativa de modificar essa realidade. Atento a isso, o chef Edson Leite viu na junção delas a oportunidade de reforçar a resistência das periferias, ao mesmo tempo em que é capaz de causar impacto positivo em inúmeras famílias de regiões mais carentes, como relata em entrevista ao Guia.

Em 2012, após uma temporada na Europa, o chef retornou ao Brasil para criar o Gastronomia Periférica, um projeto social no bairro Capão Redondo, na periferia de São Paulo, que nasceu com a missão de transformar vidas através da alimentação. O foco é repassar conhecimentos sobre gastronomia aos moradores da região.

E a cerveja artesanal entrou no projeto com um rótulo colaborativo criado pelo chef. A bebida ganhou destaque na construção dessa formação de profissionais na escola, justamente porque o ingrediente principal de sua receita é a “azedinha”, uma planta que faz parte das chamadas Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs).

As PANCs podem ser encontradas em todo o mundo e, em sua maioria, também estão dentro das periferias. Foi justamente por serem comumente ignoradas em pratos mais elaborados na gastronomia que o chef Edson Leite, em parceria com um amigo, teve a ideia de criar, no fundo do quintal, uma bebida autoral e de resistência, que leva uma das PANCs em sua receita. Assim nasceu a Pokazideia.

Pokazideia é uma gíria da periferia para encerrar uma conversa ou, muitas vezes, para afirmar algo. E como o chef destaca na entrevista ao Guia, o rótulo do estilo Lager foi feito para ser uma bebida para os amigos, tornando-se um símbolo de resistência local. Afinal, a sua produção causa impacto na periferia, pois leva na receita uma PANC produzida em Parelheiros.

A bebida ganhou mais impulso com incrementos do mestre-cervejeiro Frank Skwirut, da Cervejaria Tria. E conseguiu abrir espaços com inventividade e reforçando a luta em prol de uma maior inclusão no setor de cervejas artesanais. Logo, ela resiste, como destaca o próprio chef: “Não para atacar, mas para que perpetue-se”.

Leia também – Goose Island lança IPA criada para atender o “paladar brasileiro”

Confira abaixo a entrevista completa do Guia com o chef Edson Leite:

Qual é a sua visão da gastronomia como forma de resistência?
Acho que a gastronomia, na realidade, é só um nome para que outras pessoas possam elitizar o processo da comida. Eu sempre digo que a gastronomia transforma o que a culinária já fazia. É como chamar a Palmirinha de culinarista e o Henrique Fogaça de chef, sabe? Também tem essas coisas de palavras relacionadas ao patriarcado e ao machismo. Na minha visão da gastronomia como forma de resistência, acho que a gente dá um outro sentido para essa palavra com o Gastronomia Periférica, porque já que estão usando essa palavra, vamos usar aqui também [na periferia] para equalizar o processo. A gastronomia e a periferia nunca estiveram juntas. Então, quando trazemos as duas palavras juntas, começamos a ter resistência. A gente não tem arma para atacar. Precisamos nos defender, resistir. E a comida, ela é um processo de resistência, porque se você não come, você não consegue pensar, agir ou fazer absolutamente nada. Então, nós resistimos há anos com a alimentação.

O que é o Gastronomia Periférica? De que forma a cerveja artesanal está inserida nela?
O Gastronomia Periférica é um negócio social. Negócio porque foi feito para ganhar dinheiro e social porque impacta diretamente a vida das pessoas e como elas enxergam a sociedade. O Gastronomia Periférica nasceu com essa missão: transformar vidas através da alimentação. A gente sempre brinca que cozinhar é o menos importante dentro do Gastronomia Periférica, apesar de ter esse nome. O processo de formação e o cuidado com as pessoas é o principal. A cerveja vem dentro dessa construção de formação porque primeiro vêm as PANCs, que, na sua maioria, estão dentro das periferias.

Publicidade

Como surgiu a ideia do rótulo de cerveja artesanal colaborativo feito com PANCs? Quais são as características da bebida?
Eu e o Rafael Orlandi, que tem um sítio em São Lourenço da Serra [município que fica a cerca de 56 km de São Paulo], começamos a pensar no que poderíamos fazer com essa planta [azedinha], além de comê-la em saladas. Assim nasceu a ideia da cerveja, de fundo de quintal e na panela. Foram seis meses estudando para chegar na receita. A ideia surgiu disso: fazer algo para entrar no mercado, que é muitas vezes predatório, com a nossa cara e resistir. É uma cerveja leve, do estilo Lager e tem 4,5% de graduação alcoólica. Ela é do tipo que o brasileiro gosta, é do tipo que você pede mais. Tem um leve seco na boca no final, por conta da planta. Ela combina com o calor, com churrasco, com peixe. É uma cerveja curinga. Tem que provar, é algo bem novo.

A cerveja artesanal Pokazideia também pode ser vista como um elemento de resistência?
Essa cerveja também é um elemento de resistência porque nasce de dois caras periféricos e com um nome periférico: Pokazideia. Pokazideia é uma gíria de periferia para encerrar uma conversa ou, muitas vezes, para afirmar algo. Ela [cerveja] é produzida com a planta chamada de azedinha [parente da rúcula, mas com um gosto parecido com o limão] e é considerada praga em alguns lugares. O rótulo nasceu com a ideia de ser uma bebida para os amigos e se tornou uma bebida de resistência que impacta outras pessoas. A gente está falando de uma cerveja que, para fazer 400 litros, precisa de quase 30kg de azedinha. A planta é comprada de um pequeno produtor de Parelheiros [distrito localizado na zona sul do município de São Paulo]. Então, impactamos economicamente esse produtor. Quando vendemos [a cerveja], parte do lucro dela volta para o Gastronomia Periférica, que é uma escola de gastronomia na quebrada. O impacto dessa cerveja é gigantesco, econômico e socialmente.

Como foi o caminho da Pokazideia no mercado?
Ela resistiu a um ano de luta até conseguir entrar em mercados gastronômicos. Depois foi para uma cervejaria grande, que é a Tria, e com o mestre-cervejeiro Frank Skwirut. Equalizamos o PH da água utilizada na receita que era do Rio São Lourenço. Com isso, descobrimos que dava para produzir em grande quantidade, e descobrimos também um sabor espetacular para uma Lager a partir da azedificação por uma folha e não pela fermentação, em um processo novo. Ela [cerveja] nasceu dentro de uma quebrada, no fundo do quintal e conseguiu atravessar a ponte até chegar às elites e estar, inclusive, dentro do Hotel Pullman, na 23 de Maio [no Ibirapuera]. Também já temos essa cerveja em espaços no interior de São Paulo e em eventos. Então, resistimos. Resistir não é atacar, é pensar para que aquilo perpetue-se.

Quais são as contribuições das PANCs para o universo da cerveja artesanal? De que forma elas poderiam ser mais exploradas?
As PANCs estão no mundo inteiro e são utilizadas de maneiras diferentes. Elas não entram no mercado e, por isso, são chamadas de não-convencionais. Ela é uma cerveja onde inovamos fazendo essa provocação com a azedinha. Agora, dentro desse processo, a gente percebeu que podemos explorar a capuchinha [outra PANC], pode-se comer sua flor, que tem um leve apimentado. Podemos explorar também o ora-pro-nóbis [uma das outras várias PANCs], que também dá para usar no preparo da cerveja. Podemos utilizar as mais diversas PANCs para fazer cerveja com características diferentes que trariam uma bebida autêntica, como é a Pokazideia. É preciso ser ousado, é isso, ter coragem para sair do tradicional.

Com a expansão do setor vemos cada vez mais novos rótulos que apostam na inventividade. Como você avalia essas novas experiências na fabricação de cervejas artesanais?
Há uma expansão do setor, mas pulverizada. Eu não vejo um norte em bloco, com todo mundo vindo com a mesma missão. O brasileiro ainda tem muito dessa coisa de ir aonde está vendendo e não naquele propósito em que acredita, porque precisa ganhar dinheiro. Não estou colocando aqui se é certo ou errado, mas é o que a gente basicamente faz. Lá fora, você tem milhares de tipos de cervejas. Vai tomar uma cerveja na rua e encontra a bebida com características daquela rua, ou daquele bairro. Eu acho que, no Brasil, as cervejarias artesanais não têm incentivos.

Quais outros caminhos podem ser explorados?
É difícil você começar a fazer cerveja e ganhar mercado, porque não há um incentivo, por exemplo, de imposto, e isso para as microcervejarias artesanais, inclusive, porque o volume é menor. Os insumos são muito caros e elas precisam de um incentivo fiscal, uma isenção para crescerem e atingirem outros públicos. Os caminhos a serem explorados são os de políticas públicas, de formação e de informação, inclusive. As pessoas precisam acreditar que a cerveja não é feita somente para ficar bêbado na festa. Ela precisa ser encarada como é o vinho e o seu processo: um produto para ser degustado e apreciado com a família. Não é só para ser associada ao carnaval ou à praia. A gente precisa associá-la a diversas outras situações, inclusive, há diferentes tipos para diferentes situações.

0 Comentário

    Deixe um comentário

    Login

    Welcome! Login in to your account

    Remember me Lost your password?

    Lost Password