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Balcão Xirê Cervejeiro: Sejam bem-vindos ao afrobunker de Medida Provisória

Olá, leitores e leitoras do Guia,

Voltei e para fazer um super convite a todos e todas vocês. Vim convidá-lo/as para uma sessão de cinema e vou contar o porquê.

Em 28 de março, recebi um convite da Ambev-Ama (água engarrafada e vendida pela Ambev, que tem “100% dos lucros obtidos com suas vendas revertidos para projetos de acesso à água potável no semiárido brasileiro”) para assistir o filme “Medida Provisória”, trabalho que marca a estreia de Lázaro Ramos como diretor. Quem fez a intermediação para que o convite chegasse em minhas mãos foi a Laura Aguiar. Graças a ela, pude assistir a pré-estreia.

E porque você aí do outro lado deve assistir “Medida Provisória”? Bem, já adianto, sem medo de dizer, que o filme é um novo marco do cinema nacional, um divisor de águas e traz uma nova forma de narrativa para a filmografia brasileira e o audiovisual.

“Medida Provisória” é um filme distópico e com altas doses de realismo, que apresenta personagens como o advogado Antônio (Alfred Enoch), o jornalista André (Seu Jorge), a médica Capitu (Taís Araújo), Kabenguele (Flávio Bauraqui), Gaspar (HIlton Cobra), Elenita (Diva Guimarães) e Berto (Emicida). Vou centralizar nestes e nestas, embora todos e todas mereçam a minha e a sua atenção.

A narrativa se inicia quando o governo brasileiro resolve editar a Medida Provisória 1888, no dia 13 de maio, a qual tem como objetivo enviar todos “cidadãos e cidadãs” de melanina acentuada de volta para o continente africano sob o pretexto de uma suposta reparação histórica. O filme foi inspirado na tragicomédia Namíbia, Não!, de Aldri Anunciação, cujo espetáculo teatral foi dirigido por Lázaro em 2011. A peça, por sinal, foi premiadíssima.

No filme, a medida é imposta de forma compulsória e coloca de cabeça para baixo a vida de Antônio, André e Capitu.

– Antônio é um advogado idealista, um ativista social que luta bravamente contra a imposição arbitrária do governo. E ele encontra uma brecha na lei para resistir à imposição da famigerada medida provisória.

– André é um jornalista e ativista que utiliza das mídias sociais para denunciar ao mundo os abusos praticados pelo governo. Algumas frases ditas por ele se assemelham aos dias que temos vivido: “como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar a esse ponto? Como é que a gente riu disso?”

– Capitu, esposa de Antônio, é uma médica que acreditava na meritocracia e não discutia as relações raciais, até ser “pega” pela medida provisória.

O filme emociona do início ao fim. Uma das coisas que me tocou foi a política de citação tão bem solicitada por Conceição Evaristo: “Antônio e André” em que pese não tenha sido verbalizado pelo diretor, nos lembra os irmãos Antônio e André Rebouças, ambos, assim como eu e Lázaro, nascidos na Bahia. Se vocês nunca ouviram falar dos irmãos Rebouças, entendo, afinal, vivemos uma política de apagamento intencional dos corpos negros no tecido social. Ou, como costumamos dizer, epistemicídio.

Antônio e André são os primeiros engenheiros que revolucionaram o Brasil. Um dos grandes feitos foi a construção da Estrada da Graciosa, no Paraná. Eles colocaram o Brasil na senda da modernidade e dos avanços tecnológicos. Se temos uma Curitiba moderna, muito se dá pela engenhosidade dos irmãos Rebouças. Além do Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina são alguns dos estados que devem sua modernização aos irmãos e gênios da engenharia urbana e portuária.

Seguindo na “política de citação para combater a política de apagamento”, “Capitu” é uma das personagens de Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros. Até pouco tempo, não se falava que ele era negro.

Kabenguele, personagem interpretado por Flávio Bauraqui, é um nome que nos remete ao grande antropólogo Kabengele Munanga. Encontrei seu filho, o ator Bukassa Kabengele, ao final da sessão de pré-estreia e troquei meia dúzias de palavras.

Berto, interpretado por Emicida, nos entrega uma das cenas mais belas do filme. Ele retira das mãos de um menino uma arma de fogo e coloca um livro. Vivemos num país que mata um jovem negro a cada 23 minutos, um país extremamente letal contra a juventude de “melanina acentuada”, com a política do atual governo voltada para armar a população. Um governo que milita contra a educação e promove políticas contra jovens periféricos para que não acessem o sistema educacional. Assim, a cena do livro é um chamamento à sociedade, a uma política de acesso e afeto possível aos corpos construídos socialmente para não existir.  

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Elenita é interpretada por Dona Diva Guimarães. Guardem esse nome, prestem atenção na atuação dessa grande Griot. Em 2017, durante a Flip (Festa Literária de Paraty), cujo homenageado foi Lima Barreto, Dona Diva fez um dos relatos mais emocionantes, deixou todos os presentes sem chão e nos levou aos prantos. Eu e meu filho estávamos lá, quando ela, durante a mesa de apresentação de Lázaro Ramos, pediu a fala. Choramos todos e todas, incluindo Lázaro.

Desde aquele dia, ele e Diva não se desgrudaram mais. Dona Diva, é uma das maiores defensoras da educação, e sobretudo, dos jovens negros, negras e dos jovens pertencentes aos povos originários, algo que deixou visível na sua fala em Paraty (vejam o vídeo, está disponível no YouTube).

Já HIlton Cobra interpreta Gaspar. Ouvi sobre ele pela primeira vez em 2017, quando, em uma mesa da Flip, Lázaro fez um convite ao público para que assistisse a peça “Tragam-me a cabeça de Lima Barreto”. Peça na qual Cobra interpretava o autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma e outras obras. Nela, Hilton demostrava como o racismo científico e os eugenistas tratavam Lima. 

Lázaro Ramos faz de “Medida Provisória” um chamamento para o resgate da humanidade aos brancos, que a perdem ao não reconhecerem a humanidade das pessoas negras. O filme olha para o passado do Brasil que a “história não conta”, descortina o presente e nos convoca para construir um futuro em que todos e todas possam estar inseridos de forma igualitária na sociedade brasileira.

Conseguimos observar esse mundo possível através dos personagens trazidos por ele, os personagens negros. Diferentes dos que já foram retratados no audiovisual brasileiro, têm nome e sobrenome, bem do jeito que Lélia Gonzáles nos ensinou. Têm família, têm profissões, são médicos, advogados, jornalistas, professores. Fogem dos estereótipos que estamos cansados de ver. Não estão limpando o chão, não estão fazendo segurança do espaço (nada contra essas profissões, mas por que corpos negros sempre estão nesse lugar?).

Lázaro constrói outra narrativa. Os personagens não são bandidos, todos têm fala e falam por si. É a verdadeira expressão da música tema cantada pela nossa Orí-Presença, Elza Soares, que grita que “meu país é meu lugar de fala”. Os corpos negros não sangram.

Uma das cenas mais poéticas envolve o casal Antônio e Capitu. A câmera foca nos olhos dos personagens. É pelo olhar que eles se reconhecem, se acarinham, se afagam, sonham, transbordam afeto e afetividade, jorram amor. É uma das cenas mais encantadoras e líricas que já vi no cinema. Os olhos dos personagens dançam no mesmo ritmo, na mesma harmonia. E a beleza reina.

Lázaro nos mostra que não é preciso tirar a roupa ou hiper sexualizar corpos negros para chamar a atenção do público. Ele humaniza corpos negros. Houve cuidado e delicadeza na condução da cena, a qual, se transformou na minha favorita da vida.   

A lição que “Medida Provisória” nos dá, entre tantas, é que a partir desse marco, qualquer pessoa que esteja à frente de projetos no audiovisual brasileiro, como já bem nos lembrou Maíra Azevedo (Tia Má), não pode dizer de que não existem atores e atrizes negros e negras para atuar em suas produções. Abro um parêntese e aproveito para deixar um recado para o mercado cervejeiro: contratem pessoas negras, somos mais de 56% da população e precisamos ter equidade em todos os espaços.

Abdias Nascimento com o TEN (Teatro Experimental do Negro), um trabalho iniciado no final da década de 1940, Zezé Mota, com seu álbum/catálogo com fotos com atores e atrizes negros e negras, um projeto que iniciou em 1984, e Beatriz Nascimento, em Orí, filme de 1989, já  haviam materializado o impecável trabalho que Lázaro continuou.

Outro ponto que o filme nos revela é que não precisamos ver negros e negras interpretando papeis de subalternidade.

Medida Provisória, era para ter estreado em 2019 no Brasil, mas, foi, mas palavras de Lázaro, censurado pelo governo federal. Porém, após longos anos de burocracia, chega aos cinemas de todo Brasil hoje (14).

É importe que assistamos nessa primeira semana, para que o filme alcance bons índices. Dito isso, vejam “Medida Provisória”. Vá com todos os cuidados que o momento ainda requer, usem máscara, álcool gel, mantenham o distanciamento e divulguem o filme sem moderação. Sejam bem-vindos e bem-vindas ao afrobunker, vocês irão se emocionar do início ao fim.


Sara Araujo é graduada em Ciências Jurídicas, pela Instituição Toledo de Ensino (Bauru-SP), atuando na área de execução penal. É graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (PR), pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica pelo Instituto Pretos Novos do Rio de Janeiro, sommelière de Cervejas pela ESCM/Doemens Akademie e criadora e gestora do @negracervejassommelier.

1 Comment

  • Everton Reply

    25 de abril de 2022 at 14:33

    Esse filme é uma porcaria. Um filme absolutamente “fantasioso”, desproporcional a qualquer princípio jurídico vigente no Brasil, desprovido de qualquer princípio de razoabilidade. Pura panfletagem de militância política.

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