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Balcão da Maria Bravura: O tabu do álcool

Não é qualquer substância tóxica que é considerada ilícita e isso é muito curioso, senão inquietante. O conceito de “droga” é amplo e se estende a qualquer substância que provoque alterações no sistema nervoso (mente) e no restante do corpo humano. Sendo assim, podemos considerar o tabaco, álcool, açúcar, café, chás e remédios como drogas? Sim. Toma muito café? Faz uso de psicotrópicos pra dormir, relaxar, transar, pensar, comer, deixar de comer ou produzir? É da galera dos chazinhos de ervas? Fuma? Toma cerveja? Desculpa acabar com algum sonho de pureza seu, mas se respondeu sim a alguma destas questões, você e eu estamos todos fazendo uso de entorpecentes. Não é porque tais substâncias são lícitas que são inofensivas, não é mesmo?

O álcool suscita, desde tempos remotos, muito fascínio, mas também muita censura e condenação. Por que? É certo que há veracidade no que diz respeito aos efeitos nefastos do uso abusivo desta e de quaisquer substâncias (até mesmo de quaisquer atitudes destrutivas), mas acredito que mais nocivo ainda seja a falta de informação a respeito do que leva muitas pessoas a fazer uso abusivo do álcool que, assim como algumas outras drogas pontuais, é visto como um grande vilão da saúde e também da moral dos seres humanos (psicoativos, por exemplo, não são demonizados).

Há fundamento na abordagem biologicista? É claro. Mas ela está longe de esgotar o assunto. Na história da humanidade, o álcool esteve fortemente presente e exerceu um papel importante na constituição e regulação de cada cultura e sociedade. Para os povos antigos, como sumérios e babilônicos, o álcool era uma substância sagrada e dotada de misticismo, associada a deuses e até à feitiçaria. Ou seja, não dava para dizer para essa turma que álcool faz mal e deve ser banido, pois para eles o álcool tinha um significado muito mais profundo.

Arqueólogos descobriram recentemente, em Göbekli Tepe (Turquia), cujo templo é considerado o mais antigo do planeta, recipientes gigantes de pedra fabricados há mais de 10 mil anos e neles encontraram vestígios de oxalato de cálcio, normalmente produzido durante a imersão, maceração e fermentação dos grãos para a fabricação de cerveja. Era um local de encontros ritualísticos e festividades, onde comiam e tomavam cerveja. A moral da pesquisa é que o “beber socialmente” desempenha um papel fundamental em nossa evolução e civilização. Não dá só pra tacar pedras no álcool e também não dava para chegar na roda dessa galera e pregar sobre os malefícios dele.

Na verdade, vários estudos evidenciam e comprovam os benefícios fisiológicos e sociais derivados diretamente do consumo responsável de álcool. Além disso, outros estudos sobre o beber socialmente mostram que aqueles que bebem com responsabilidade tendem a ser mais engajados socialmente, sentem maior bem-estar e tendem a confiar mais em outros membros de sua comunidade do que aqueles que não bebem nada.

Hoje o consumo e produção do álcool não é algo proibido em grande parte do mundo, mas já foi durante a Lei Seca dos Estados Unidos, por exemplo, por longos 13 anos. O resultado? Aumento do consumo (alcoolismo), da mortalidade por conta da baixa qualidade das bebidas e da criminalidade (tráfico pesado, formação de gangues e quadrilhas e violência usada por ativistas da repressão). Por isso, o tabu do álcool precisa ser discutido – tabus tendem a produzir generalizações que só atrapalham o acesso a informações realmente válidas. Proibição e ataque, como a história já provou, costumam gerar ignorância, pavor e, consequentemente, uma curiosidade perigosa e despreparada.

Ok. Mas é inegável que o álcool é uma das substâncias entorpecentes que mais mata e quebra-se um tabu muito grande quando se diz que nem todos possuem tendência ao abuso e tampouco à dependência. Por certo, é preciso que fatores de risco ajam em conjunto para que alguém se torne alcoolista. Em suma, há indícios que confirmam a hipótese de que a vulnerabilidade genética e o sofrimento psicológico são fatores de risco para o alcoolismo e que a vulnerabilidade genética está relacionada com o gênero sexual, o estresse psicológico e a idade.

Segundo a psicanálise, o álcool possui o poder de transportar o indivíduo a uma situação de prazer ilimitada. O que se busca ao beber em demasia é uma situação de plenitude onde nada falta. O alcoolista encontra no álcool a química que o distrai de suas faltas e a substância se torna para ele um gozo eterno, enquanto durar o efeito da droga, claro. Este gozo sem limite pode ir até os meandros da morte e muitos são fatalmente capazes disso em nome do seu desejo de gozo eterno.

A conclusão é que, pelo visto, exigir que o ser humano viva uma vida plenamente sóbria é uma pífia odisseia. A própria mente seria capaz de produzir seus meios para “fugir” da crueza da realidade. Felizmente, essa promessa de completude e gozo eternos não seduz a todos como um canto de sereia nem de boto cor-de-rosa. Há, sim, muitas pessoas que aprenderam, de formas variadas, a conviver amigavelmente com seus vazios, limitações e consciência de sua finitude e incompletude. Ou seja, muitos bebem e, por mais prazer que sintam, conseguem sem sofrimentos homéricos interromper o ritual e fazer qualquer outra coisa. Muitos conseguem sentir tanto prazer quanto ou até mais em outras atividades e, ainda assim, tomar um gole e outro. Você consegue beber álcool e não ser bebido por ele? Tarefa difícil para alguns, para outros, natural. O autoconhecimento pode ser mais eficiente do que a censura.

E as artesanais?
Na cultura das artesanais é uma grande satisfação perceber que nos últimos anos temos nos deparado, cada vez mais, com um novo perfil de consumidor de cervejas: mais minucioso, crítico e interessado nos processos de fabricação e não em simplesmente mandar o álcool goela abaixo. Esse novo conceito de consumo repudia a cerveja extremamente gelada, bebe em menor quantidade e preza mais a qualidade do que os litros ingeridos. É capaz de pagar R$ 40 numa Brut IPA ao invés de R$ 35 em 18 latas de Skol.

Com isso, poderíamos dizer que as condições socioeconômicas de cada grupo podem influenciar o seu perfil de consumo? Creio que sim. 81% dos consumidores das artesanais ­­tomam cervejas semanalmente, mas em pequenas quantidades e de forma consciente, com foco na apreciação. Muitos, ainda, consomem como forma de estudar e aprender sobre as cervejas, sem contar no aumento do número de pessoas interessadas em harmonizar cervejas com comidas – e isso contribui para o consumo responsável. Eu pelo menos nunca vi alguém querendo tomar cinco ou mais garrafas inteiras de cervejas durante a apreciação de um menu gastronômico.

Parece-me que pessoas com melhores condições socioeconômicas, mais informadas e que bebem por questões sensoriais e não só ritualísticas, sociais ou psiquiátricas, possuem mais chances de alcançar o equilíbrio. É o álcool o grande vilão ou a infinidade de mazelas que o ser humano enfrenta? Não sei. Mas acredito que, neste caso, ser bem informado não diz respeito somente ao universo das cervejas e de como produzi-las, mas também ao universo interior de cada um de nós, ou seja, do funcionamento e das reações de seu próprio corpo/mente; das reais necessidades que se busca suprir através do uso do álcool, assim como o que o estimula, além do álcool. No meu caso: livros e escrever – com um copo de cerveja boa nas mãos, então… Bom, e que vença a prerrogativa do beba menos, beba melhor.

Um brinde à liberdade, ao respeito e aos direitos conquistados! Saúde!


Fernanda Pernitza é fundadora e sócia-proprietária da Maria Bravura Cervejas Especiais, beer sommelier e psicóloga

2 Comentários

  • Rodrigo Neves Reply

    31 de maio de 2019 at 15:40

    Infelizmente tenho que descordar de quase tudo que a autora escreve.
    Trabalho com cerveja artesanal há mais de 5 anos e sempre comento com meus alunos e amigos, alcóol é DROGA!
    Bullshit esse papo de beba menos, beba melhor, o que mais se vê em eventos cervejeiros são os consumidores chapados no final, ainda mais com breja de 6 – 7 – 9% de ABV.
    Todo mundo tem algum familiar ou conhece alguém próximo que é alcoólatra. Alcoolismo traz diversos problemas desde a saúde, relacionamento, finanças pessoais, desempenho no trabalho e principalmente na família. Essa triste realidade foi omitida em um texto que eu acreditava quando li o link que seria um alerta aos consumidores.
    Lamentável! ps. não sou hater de internet, sou cervejeiro profissional, consultor e professor cervejeiro, que se indignou com a falta de atenção dado a consumo excessivo e abusivo do alcóol.

    • Fernanda Pernitza Reply

      1 de junho de 2019 at 20:16

      Olá, Rodrigo! Interessante como cada um ao ler um texto o interpreta de maneiras tão distintas; e o escritor não fica de fora ao escrever, não é mesmo? Quando escrevemos corremos este risco e pagamos o preço; além do mais, já estava à espera de alguma oposição deste tipo, uma vez que trago aqui uma análise que quebra tabus e…tabus são tabus. Mas, se você estiver interessado, estou disposta a esclarecer algumas coisas pontuais. Por exemplo: Não sei como chegou a tal conclusão, mas eu não defendo o álcool e nem faço apologia ao uso dele, tampouco negligencio seu poder em destroçar o ser humano (“Mas é inegável que o álcool é uma das substâncias entorpecentes que mais mata”). Mas também não o demonizo e isso pode ser visto com muita resistência por alguns e provavelmente foi isso que lhe ressoou enorme incômodo, compreendo. Claro que não esperava isso vindo da ala de quem lucra com cervejas, como eu e você, mas enfim. O que faço neste texto é percorrer histórica, filosófica e culturalmente o significado do álcool em diversas sociedades e seu sentido mais primitivo à luz da psicanálise. É uma viagem pra quem não tem medo de relativizar algumas certezas. Mas fique à vontade! Encerro meu comentário com um trecho que fundamenta tudo o que escrevi: “(…) Por isso, o tabu do álcool precisa ser discutido – tabus tendem a produzir generalizações que só atrapalham o acesso a informações realmente válidas. Proibição e ataque, como a história já provou, costumam gerar ignorância, pavor e, consequentemente, uma curiosidade perigosa e despreparada”
      Abraços!

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