Artigo: A Cerveja e a Besta, por Cilene Saorin
Por Cilene Saorin*
As cervejas, os vinhos e os hidroméis são as primeiras bebidas alcoólicas fermentadas da história da humanidade a oferecer experiências de elevação do estado de consciência. E isso sempre foi associado ao divino ou ao profano, a depender da perspectiva.
Desde tempos remotos, as mulheres eram responsáveis pelas produções de cerveja e recebiam muitas vezes julgamentos antagônicos: ora santa, ora bruxa.
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Hildegard von Bingen (1098-1179) foi uma monja beneditina alemã que dedicou toda sua vida ao preceito Ora Et Labora. Quando não rezava, estudava. Do Labora, muitos estudos e manuscritos relacionados à botânica e à medicina humana. Dentre suas descobertas, o lúpulo é apresentado como uma poderosa flor que, se utilizada em receitas, seria capaz de estender “a vida” das cervejas da época. Recomendação lida e seguida por muitos ao longo da história, sendo particularmente acatada – quase 400 anos depois – na conhecida Lei de Pureza em 1516 (Reinheitsgebot).
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Hildegard foi visionária – e não apenas no tema que nos acerca. Com inteligência transversal, também transitava pela poesia e pela música. Compôs obras dramáticas (quase operísticas) e cantatas (registros melódicos, não-instrumentais). Finalmente, ela também foi filósofa e seus pensamentos sugeriam reflexões de igualdade entre homens e mulheres.
Hildegard foi uma mulher feminista em pleno século XII.
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As alewives eram mulheres casadas (ou não, na verdade) que produziam e vendiam cervejas na Inglaterra medieval, do século XIV ao XVIII. Tornaram-se também muito conhecidas como as bruxas da Idade Média.
Nada se conhecia concretamente sobre os processos de fermentação em tempos medievais. (O conceito de leveduras e seus metabolismos viria apenas no final do século XIX, com os estudos de Louis Pasteur e Emil Christian Hansen).
A produção de cervejas era a alquimia dada por intuição e capacidade lógica. As mulheres dominavam as técnicas de produção e eram tidas como pessoas de poderes ocultos. Elaboravam cervejas com excelência e, por essa razão, passaram a garantir suas independências.
Que tamanha ameaça seria a independência… Trataram, assim, de instaurar a fase “caça às bruxas”. Todas queimadas na fogueira.
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No século XIX, os homens já tomavam a cena de maneira impositiva em todos os campos de atuação: nas cervejas, nos vinhos, na gastronomia, na literatura, na música…
A imposição social é uma violência. Ao longo da história, quantos talentos foram e estão sendo perdidos por conta do ridículo vórtex social que insiste em demarcar saberes e quereres? Não pode ser. Só pode assim. Não pode estar. Só pode aqui. Não pode amar. Só mesmo morrer.
Em pleno século XXI, muitos homens ainda não se relacionam bem com mulheres ocupando diferentes esferas de poder com liberdade, beleza, dinheiro e competência. O feminismo é um movimento importante para garantir igualdade de direitos. Os direitos de ser, estar, ir e vir. Da mesma forma, outros movimentos de minorias de direitos confluem por esta mesma causa.
O machismo, o racismo, a homofobia, a transfobia, a xenofobia e outros tantos cabrestos: até quando, caricatos?
É bem próprio da natureza humana sentir-se inseguro diante da perda do protagonismo. Nessas horas, é preciso olhar com cuidado os inimigos de dentro. Os piores são os inimigos de dentro. E são muitos: vaidade, prepotência, ignorância, ganância, inveja, recalque. Não há nada mais patético do que responder à perda do protagonismo com agressão física, moral ou psicológica. É a infantilidade adulta. É a perversidade da besta.
Em uma sociedade inteligente e civilizada, compartilhar protagonismo é um exercício de maturidade e generosidade.
Somos uma grande fauna como humanidade. Se é muito difícil ser humano e respeitar a diversidade, talvez estudar alguns dados estatísticos demográficos possa ajudar a convencer de que não há outro caminho. A atitude inclusiva e o respeito à pluralidade nos farão aproveitar melhor as oportunidades da vida e dos negócios. E atenção: o êxito pede verdade. Um discurso falso cai por terra e é devastador.
A luta é longa. A vida é curta. A inteligência salva. O feminismo salva. O antirracismo salva. O amor livre salva. A fé livre salva. A ciência salva. Por gentileza, aprendamos isso definitivamente.
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Sobre a cerveja que rega meus pensamentos neste momento:
O folclore brasileiro é fonte de inspiração para os nomes das diferentes proposições da Cervejaria Nacional. A “assustadora” Mula (Sem Cabeça) é pura exuberância, em um dos estilos de cerveja mais populares do mundo: American India Pale Ale (também chamado American IPA). As cores estampadas em seu desenho sugerem a cor quente castanho-avermelhada desta cerveja. As notas cítricas-frutadas (especialmente, maracujá) tomam a frente, seguido de um toque doce-caramelado. É a dança dos lúpulos e dos maltes, antes e depois do gole. Um final de boca seco e convidativo, marcado por um amargor ligeiramente adstringente. Uma versão fiel ao estilo: tropical, refrescante e instigante.
Notas de serviço: Um copo ou uma taça são sempre bem-vindos para melhor apreciação. Este particular estilo, perfumado de lúpulos, perde exuberância no tempo. Sendo assim: tanto mais fresca, tanto melhor. Uns goles de água intercalados aos desta cerveja também caem bem, já que a força alcoólica é algo atrevida. Cuidem-se e saúde!
Cilene Saorin é sommelière, mestre-cervejeira e diretora da Doemens Akademie no Brasil
6 Comentários
Washington Galiza
19 de julho de 2020 at 07:15A apr fiadora de cerveja Cilene Saorim, aproveitou para politizar um pouco no txt. Ótimo, devemos sempre nos posicionar. Mas em relação as castrações machistas, tenho algo simples a dizer. As mulheres reclamam tanto dos castradores e os abusadores, mas se casam na maioria das vezes com homens assim e desejam os ditos homens Alpha. Se posicionar só discursivamente não trará resultados positivos. As mulheres devem evitar e lutar contra esses tipos chamados machos Alpha. Dialogar é bom, mas não é suficiente, mulheres tem que se preservar e agir. Pregar e viver não resolve, devemos viver o que pregamos.
Chiara
19 de julho de 2020 at 14:49Maravilhosa e coerente como sempre
Cilene Saorin
30 de julho de 2020 at 14:14Generosa e amorosa, como sempre. Muito obrigada, Chiara.
Rita Barcessat
29 de julho de 2020 at 10:12Nada mais generoso que a perspectiva inclusiva, especialmente diante de algo tão democrático ( ou não …) como as cervejas . Experimentamos por aqui a liberdade do protagonismo compartilhado , divino e libertador . Cilene sempre de encontro da forma mais elegante e perspicaz a tudo o que pensamos ! Banca Rio’s Beer – Macapá – AP
Cilene Saorin
30 de julho de 2020 at 14:22Lindas (e generosas) palavras, Rita. Muito obrigada pelo carinho. Saudações ao extremo e lindo norte do país!