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Balcão do Profano Graal: As mulheres na história da cerveja

Um capítulo da história da cerveja que nós raramente encontramos em algum livro ou apostila é aquele sobre o importante papel desempenhado pelas mulheres na produção, comércio e consumo. Então, que tal aproveitarmos esse mês de março, em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher (08/03), para conversarmos um pouco sobre o assunto?

Desde a Antiguidade, as mulheres desempenham papel fundamental na produção da cerveja. Acredita-se que a fermentação foi descoberta por acaso, há cerca de 14 mil anos. E uma vez que as mulheres eram as responsáveis pelas “tarefas domésticas”, como preparar a comida, muito provavelmente essa descoberta foi feita por uma delas.

O papel das mulheres nesse processo é representado pela existência de deusas da cerveja (que, geralmente, eram também deusas da agricultura, da colheita e da fertilidade) na mitologia de todas as grandes civilizações antigas: Ninkasi na Mesopotâmia, Hathor no Egito, Deméter ou Ceres na Grécia e em Roma. De quem, aliás, o nosso líquido sagrado tira o seu nome em latim: cerevisiae.

Ao longo dos séculos, enquanto a produção de cerveja se manteve como uma tarefa doméstica, ela foi responsabilidade das mulheres. Na cultura dos povos nórdicos da Idade Média, conhecidos mais popularmente como vikings, a elaboração das bebidas era uma tarefa feminina e as mulheres se responsabilizavam por todo o processo e deviam cuidar para que as despensas estivessem sempre bem abastecidas de ingredientes tanto para a elaboração da bebida de todos os dias como para as festas.

A rainha era responsável por portar a taça de bebida simbolizando os laços de fidelidade entre os guerreiros. Esta cerimônia da rainha servindo a bebida é parte de um ritual que confirma o governo do rei e cimenta a ordem social dos seus seguidores. A ordem em que cada um é servido mostra a hierarquia entre os participantes, com o rei vindo primeiro, depois os homens de classe mais alta e, finalmente, os mais jovens. A figura da rainha ou princesa poderia inclusive substituir o rei ou líder ausente no banquete.

Não podemos esquecer também que devemos a uma mulher a popularização do lúpulo na produção de cerveja: a monja beneditina Hildegard von Bingen (1098-1179), mestra do mosteiro de Rupertsberg na cidade de Bingen am Rhein, na Alemanha. Que, no seu tratado de medicina naturalista intitulado Livro das sutilezas das várias naturezas da criação (Liber subtilitatum diversarum naturarum creaturarum, no original em latim), escrito entre 1151 e 1158, afirma que o lúpulo seria um eficiente conservante natural para bebidas: “O lúpulo é quente e seco, tem umidade moderada e não é muito útil para beneficiar o homem, porque faz crescer a melancolia no homem, entristece a sua alma e oprime seus órgãos internos. Mas também, como resultado do seu amargor, ele mantém algumas putrefações fora das bebidas, às quais pode ser adicionado para que durem muito mais tempo”.

A historiadora norte-americana Judith Bennett é autora de uma extensa pesquisa sobre as mulheres no mercado da cerveja na Inglaterra na passagem da Idade Média para a Idade Moderna (entre 1300 e 1600): as famosas ale-wives. Ela afirma que os registros públicos no período pré-Peste Negra (1348-1350) mostram a fabricação de cerveja como uma profissão exclusivamente feminina. Fabricar e vender cervejas permitia que as mulheres trabalhassem e obtivessem seu autossustento, lhes concedendo algum grau de independência com relação aos homens. Isso em um período histórico no qual elas eram impedidas de tomar a maior parte das decisões sobre a sua própria vida.

O trabalho da maioria das mulheres no período medieval tardio era de baixa qualificação, baixo status e baixo lucro. Comparativamente, as cervejeiras não-casadas (solteiras ou viúvas) viviam de forma mais independente e tinham um padrão de vida mais alto comparados a outras mulheres medievais com o mesmo estado civil.

Porém, após a Peste Negra (que dizimou quase metade da população europeia), a sociedade medieval passou por muitas mudanças que tiveram efeitos significativos no comércio de cerveja: consolidação dos mercados urbanos, aumento dos padrões de vida, maior acesso ao capital, acesso mais barato aos grãos, maior demanda por cerveja como alimento básico da dieta e centralização e crescente popularidade das alehouses. Se, por um lado, essas mudanças teriam ajudado no desenvolvimento do negócio dessas mulheres, por outro, o mercado cervejeiro também se tornou maduro para um maior investimento de capital em insumos, equipamentos e mão-de-obra. E, como explica a autora, eram os homens que tinham os recursos legais, sociais, culturais e, principalmente, capital para comandar uma indústria em rápido processo de capitalização: “devido a essas mudanças, o mercado de cerveja se transformou de uma indústria dominada por mulheres casadas e não casadas, cervejeiras ocasionais, em um comércio profissionalizado e governado por homens”. (BENNETT, 1996, p. 168)

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Como resultado, após as mudanças do setor após a Peste Negra, as alewives no final dos séculos XIV e XV enfrentaram um de dois destinos: maior lucro ou marginalização no comércio. As mulheres que conseguiam permanecer no comércio de cerveja eram geralmente casadas, viúvas ou tinham acesso incomum a dinheiro e capital para uma artesã. Seu casamento garantia o acesso aos recursos e investimentos necessários para se manter no mercado. Com a saída da maioria das mulheres não casadas do comércio de cerveja, a produção independente de todas elas tornou-se menos aceita e as cervejeiras casadas também se tornaram menos independentes de seus maridos.

As demais mulheres envolvidas no comércio de cerveja (cervejeiras ocasionais) perderam a facilidade de entrada no mercado e a estabilidade econômica que encontravam anteriormente e ou encontraram outros negócios ou métodos de autossustento (casamento, prostituição etc.) ou permaneceram no comércio de cerveja empregadas por cervejeiros do sexo masculino. No século XVI, as guildas também centralizaram e regulamentaram a fabricação de cerveja mais fortemente, contribuindo para o declínio das mulheres no comércio de cerveja.

Por fim, não podemos deixar de comentar que o imaginário cristão medieval estigmatizava essas mulheres que traficavam com ervas e caldeirões e que conheciam receitas por meio das quais produziam, quase que por magia (note-se que, naquela época, nada se conhecia sobre os processos de fermentação), uma bebida que entorpecia os homens, deixando-os vulneráveis. Some a isso o fato de que algumas comerciantes de cerveja caminhavam nas feiras medievais com chapéus pontudos para serem reconhecidas; enquanto outras colocavam uma vassoura do lado de fora da própria casa como sinal para avisar que a cerveja estava pronta. Por último, mas não menos importante, nas casas onde havia estoques de cereais, geralmente havia também um gato, para proteger os cereais do ataque de ratos. Esses símbolos propiciaram a associação entre a fabricação de cerveja e a bruxaria, dando pretexto para uma verdadeira caça às bruxas. 

Judith Bennett afirma que as mulheres cervejeiras se tornaram um bode expiatório para todos os vícios que o mundo medieval temia da produção de álcool. As mulheres que trabalhavam na fabricação e venda de cerveja foram acusadas de serem desobedientes a seus maridos, sexualmente desviantes, e de frequentemente enganarem seus clientes com cerveja diluída e preços mais altos. Seja como sexualmente promíscuas ou empregadoras de prostitutas, as alewives eram frequentemente associadas a comportamentos pecaminosos. A cidade de Chester chegou a promulgar uma lei, em 1540, que ordenava que nenhuma mulher entre 14 e 40 anos pudesse vender cerveja, na esperança de limitar o comércio apenas a aquelas acima ou abaixo de uma idade sexualmente ativa.

Esse longo processo acabou por marginalizar as mulheres na produção, comercialização e consumo da cerveja. Roubou, assim, o papel de protagonistas que mantinham desde a Antiguidade. Até que, já no século XX, o desenvolvimento da publicidade transformou-as de produtoras em produtos a serem consumidos com a cerveja. Mas essa já é outra história…


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BENNETT, Judith M. Ale, Beer and Brewsters in England: Women’s Work in a Changing World, 1300–1600. New York: Oxford University Press, 1996.

CAMPOS, Luciana. A sacralidade que vem das taças: o uso de bebidas no Mito e na Literatura Nórdica Medieval. Revista Brasileira de História das Religiões. v. 8, n. 23, p. 97-107. 2015. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/article/view/29528.

CORNELL, Martyn. A short history of hops. Zytophile. 2009. Disponível em: http://zythophile.co.uk/2009/11/20/a-short-history-of-hops/.

MARTINS, Maria Cristina da Silva. Hildegarda de Bingen: Physica e Causa et Curae. Cadernos de Tradução. Porto Alegre, p. 159-174, Edição Especial 2019.

MORBIDELLI, Francesca. La storia delle Alewives: um po’ birraie, um po’ publican, um po’ streghe nell’Inghilterra mediovale. La Pinta Medicea: news di birra artigianale e di qualità. Disponível em: https://www.pintamedicea.com/birra/2020/un-po-birraie-un-po-publican-un-po-streghe-le-alewives/

STANDAGE, Tom. A história do mundo em 6 copos. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

VAUGHAN, Theresa A. The Alewife: changing images and bad brews. Avista Forum Journal: Medieval Science, Tecnology & Art. Vol. 21.1/2. 2011. p. 34-41.


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História

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