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Balcão da Cilene: Da Trilogia ‘Desenhando Sonhos’ – Saga Terceira: Salvar os sonhos (Parte I)


A cerveja, antes de tornar-se cerveja, é uma infusão. Uma infusão de grãos, essencialmente, chamada mosto. A primeira fase do processo de produção se dá ao calor de muito altas temperaturas, o que oferece salubridade ao mosto por efeito de esterilização. Os lúpulos, comumente incorporados nesta mesma fase, também contribuem à salubridade do mosto por efeito bacteriostático.

Por essa razão, historicamente, o mosto sempre foi uma segura e nutritiva fonte de alimentação da humanidade. Uma bebida atraente de perfume característico de grãos infusionados e intenso binômio doce-amargo na boca. Nada mal, mas a natureza nos reservou algo ainda melhor…

A enorme susceptibilidade do mosto à ação da microflora presente no ambiente deu passo aos processos fermentativos, provocando assim sua profunda transformação ao que então resultaria em variadas notas aromáticas, acidez marcante, sensação frisante e poder inebriante.

Assim, a cerveja apresenta-se espontaneamente à humanidade como um alimento ainda mais atraente e saudável, simplesmente porque elementos gerados pelas fermentações tais como ácidos orgânicos, gás carbônico e álcool ajudam a alcançar um mais ajustado equilíbrio sensorial e uma mais potente ação bacteriostática na bebida.

Sem dúvida, por milhares de anos, a cerveja salvou a humanidade de inúmeros apuros graças a sua composição especialmente alcoólica.
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Em tempos modernos, o álcool carrega um ar denso de vilania. Esse estigma é passível de compreensão por conta de enfermidades individuais e conflitos sociais ocasionados pelo excesso de consumo. Entretanto, a questão intrigante para mim é: o problema está no álcool ou em nós mesmos?

Com base nas primeiras linhas deste texto, creio que sabemos bem a resposta. O problema está em nós mesmos, no exercício do autoconhecimento e na maneira como decidimos lidar com os prazeres e os descuidos do “comer e beber”.

Essas linhas não trazem apologia; e sim, a ideia da autorreflexão e do perspectivismo. A busca pelo equilíbrio entre a lucidez e a ilusão é própria da natureza humana. Ninguém vive apenas no real e concreto. Muitas vezes, a lucidez machuca. E, então, a ilusão regenera. Sem sonhos, a vida é unidimensional e trágica. Os sonhos trazem dimensionalidades, ou seja, expandem a consciência para realidades alternativas e possíveis em outras dimensões.

Os seres humanos sempre buscaram meios de expansão e elevação do estado de consciência. E o álcool é um desses meios com efeitos benéficos sempre que percebido e experimentado de forma ampla e inteligente. O álcool a oferecer-nos a possibilidade do “olhar e pensar” diferente e melhor. O álcool a aguçar-nos a sensibilidade para sutilezas e criações. Novas sinapses, novas conexões, novas saídas, novos horizontes. O futuro nos sonhos.

Os pensamentos extremos – que insistem em ignorar nossa diversidade – também são próprios da natureza humana, no entanto podem ser considerados desvios de consciência e equilíbrio.

Em meu profundo desejo de afastar extremismos, guardo sempre em mente: “Aos deuses de fora, a contemplação. Aos deuses de dentro, os sonhos.”

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Eu sempre procurei a psicodelia* em mim. Ora pela serotonina dos esportes; ora pela pulsação das músicas; ora pelo álcool das cervejas. E é certo dizer que o tempo realmente ajuda a melhor encontrá-la [a psicodelia].

Psicodelia*: Uma composição das palavras gregas psique (ψυχή – alma) e delein (δηλειν – manifestação). É uma manifestação da mente que produz efeitos profundos sobre a experiência consciente. A experiência psicodélica é caracterizada pela percepção de aspectos da mente anteriormente desconhecidos e inusitados ou pela exuberância criativa livre de obstáculos. Não somente as drogas produzem a psicodelia.
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O filme dinamarquês Druk (traduzido como “Mais Uma Rodada”), de Thomas Vinterberg, trata este tema magistralmente ao apresentar a linha tênue entre o prazer e a dor.

Nesta ficção, a teoria científica de um filósofo norueguês propõe que os seres humanos têm um desprovimento de 0,05% de álcool no sangue e que, para realizar plenamente suas potencialidades, eles deveriam suprir diariamente essa dose que falta. Quatro professores de um colégio dinamarquês põem essa ideia à prova, testando em si mesmos a hipótese e trazendo à luz uma jornada de autoconhecimento e reflexões. Alguns experimentam senso de libertação e ampliação de sensibilidade; outros perdem-se na escuridão. Experiências individuais intransferíveis.

A câmera na mão é uma estética recorrente nos filmes de Vinterberg e serve, neste filme, para transmitir uma sensação de instabilidade própria do estado etílico. Uma solução genial em que a câmera se embriaga pelos atores. Aliás, os atores são brilhantes priorizando olhares e diálogos corporais.

Este longa-metragem, recém-lançado no Brasil, está indicado ao Oscar 2021 de Melhor Direção e Melhor Filme em Língua Estrangeira.
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O tema “consumo de bebidas alcoólicas” realmente toca em questões muito delicadas. Em uma visão geral, questões associadas à saúde e segurança pública. É preciso certa maturidade técnica e psicológica para podermos discutir esse tema de maneira a encontrar soluções inteligentes aos problemas sociais e, ao mesmo tempo, tomar proveito dos conhecidos benefícios à saúde física, mental e social.

A comunidade cervejeira poderia encabeçar iniciativas de renovação de políticas públicas relacionadas à educação do consumo de bebidas alcoólicas e ao redesenho da percepção de valor da cerveja na gastronomia e na história da humanidade. Isso não me ocorre como puro devaneio. Isso já foi feito em outros cantos do mundo, como por exemplo na Espanha e na Inglaterra. Isso é um sonho possível – sim, com boa dose de utopia, mas ainda assim um sonho possível.

No entanto, para alavancar iniciativas neste sentido, está claro que é preciso – além de maturidade – vontade política, comprometimento coletivo e liderança firmada pelo exemplo.

PS: Agradecimentos especiais ao Sidarta Ribeiro (Neurocientista, Instituto do Cérebro, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil) e à Bruna Lessa (Cineasta, Bruta Flor Filmes, Brasil).


Cilene Saorin tem se dedicado às cervejas, nos últimos 28 anos, por alguns cantos deste planeta. É sommelière, mestre-cervejeira e diretora de educação da Doemens Akademie para América Latina e Península Ibérica

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