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Balcão do Profano Graal: O grande mito medieval da água

Para dar início às nossas conversas sobre a história da cerveja em 2022 no Balcão do Profano Graal, resolvi falar de um insumo importantíssimo na produção do nosso líquido sagrado: a água. Se você não sabe, mais de 90% da cerveja é água. E a composição química da água tem um efeito importantíssimo para o resultado final da cerveja. Mas eu não pretendo escrever uma “história da água”. Muito menos fazer um elogio à “maravilhosa água de Agudos”. Até mesmo porque, hoje em dia, existem muitos métodos de tratamento da água, que permitem ao cervejeiro ajustar o seu perfil às suas necessidades. O que eu quero nesse texto é discutir um dos “mitos” (eu diria mesmo “erros”) mais repetidos na história da cerveja. Aquilo que o blogueiro norte-americano de história da alimentação Jim Chevalier, denomina de “O Grande Mito Medieval da Água”.

A cerveja representou uma parte essencial da dieta medieval do homem europeu. A quantidade exata de cerveja ingerida diariamente não é conhecida, mas segundo registros da Catedral de São Paulo (de Londres) do final do século XIII, poderia chegar a um galão diário (aproximadamente 3,8 litros) por pessoa. Por isso, uma afirmação amplamente repetida é a de que o grande consumo de cerveja se devia ao fato de que a água não era segura para a saúde. A cerveja seria mais acessível e saudável, uma vez que o seu método de preparação (por meio da fervura) eliminaria as impurezas da água.

O que está por trás dessa ideia é o fato de que as cidades europeias parecem ter passado por um retrocesso no aspecto sanitário no início da Idade Média em relação ao período de dominação romana. Os romanos faziam captação de água a longa distância, abastecendo as cidades por meio de aquedutos e tubulações subterrâneas. São famosos os banhos romanos (termas) e seu sistema de esgoto. Mas, ao longo da Alta Idade Média, muitas dessas estruturas se transformaram em ruínas à medida que a gestão do saneamento passou das mãos dos governos centrais para as administrações comunais (municipais). A captação de água passa a ser feita, em grande parte, por meio de poços (na sua maioria particulares). Muitos deles eram escavados próximos a fossas e à área de criação de animais, o que favorecia a proliferação de epidemias que de tempos em tempos assolaram a Europa durante a Idade Média.

Em um artigo intitulado “Was water really regarded as dangerous to drink in the Middle Ages?”, publicado no seu site Zythophile em 2014, o jornalista britânico Martyn Cornell aborda o que há de verdade nessas afirmações, expondo as pesquisas de Jim Chevalier. Segundo Chevalier, o consumo de água certamente era mais difundido do que muitos comentaristas modernos parecem acreditar, principalmente pelos menos abastados:

Não há nenhuma razão específica para acreditar que as pessoas da época bebiam proporcionalmente menos água do que hoje; em vez disso, como a água normalmente não era vendida, transportada, tributada etc., simplesmente não haveria razão para registrar seu uso. As pessoas da época preferiam bebidas alcoólicas? Provavelmente, e pela mesma razão que a maioria das pessoas hoje bebe outros líquidos além da água: variedade e sabor.

Martyn Cornell

Ou seja, segundo Chevalier, durante a idade Média, assim como durante toda a existência da humanidade, a água era a bebida mais consumida. Simplesmente porque era gratuita. O que nos faltaria seriam fontes que atestassem esse consumo. Simplesmente porque, como diz o autor, beber água não é motivo para registro. Complementa o autor que, ainda que a contaminação da água fosse certamente uma preocupação, as pessoas tinham bom senso e discernimento suficiente para saber detectar e evitar águas lamacentas, pantanosas ou turvas, que poderiam estar contaminadas. Aqui é importante estar atento para não cometer um dos pecados capitais de quem escreve história: o anacronismo. Provavelmente, uma água considerada própria para o consumo pelos homens da Europa medieval estaria muito longe daquilo que hoje consideramos “água potável”, simplesmente porque os padrões de higiene atuais são mais rigorosos. Lembrem-se que, apenas para dar um exemplo, os homens medievais não conheciam o conceito de microorganismos.

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O abastecimento de água própria para o consumo também parece ter sido uma preocupação constante das administrações municipais. Segundo a professora da Universidade do Minho Maria do Carmo Ribeiro, que estudou os espaços e arquiteturas de abastecimento nas cidades medievais portuguesas, é constante nos núcleos urbanos a presença de cisternas, tanques, fontes e chafarizes, para captação e distribuição de água. Era feita também a captação no exterior dos núcleos urbanos, conduzindo-a até a cidade por meio de encanamentos ou aquedutos. A municipalidade de Londres, por exemplo, construiu “The Great Conduit” no século XIII, usando canos de chumbo para trazer água potável da nascente do Rio Tyburn, fora dos muros da cidade. Ressalta a autora que para além do uso doméstico (lavar roupa, dar de beber aos animais) a água era igualmente fundamental para algumas atividades econômicas de produção e transformação necessárias ao abastecimento da cidade, tais como o abastecimento de carnes e peixes, peles e couros. Dessa forma, a água deveria estar disponível para consumo de muitas formas. Mas a sua maior presença nos núcleos urbanos medievais ocorria por meio dos rios que, invariavelmente, cortavam as cidades. E sua presença era fundamental para o próprio desenvolvimento do núcleo urbano, constituindo-se em um “forte atrativo para a realização de atividades comerciais, produtivas e portuárias relacionadas com a prática da navegação fluvial e marítima”. (RIBEIRO, 2020, p. 391)

Chevalier questiona também a ideia de que o consumo de cerveja pudesse chegar a um galão diário por pessoa. Com exceção, talvez, de monges, cônegos e trabalhadores em instituições religiosas. Segundo ele, o país (ele provavelmente está se referindo à Inglaterra) simplesmente não podia cultivar grãos suficientes para manter esse consumo e ainda atender à demanda por pão. Fora de grandes instituições como mosteiros, cidades ou grandes vilas, durante a Alta Idade Média, a produção de cerveja provavelmente dependia geralmente de chefes de família “com um ocasional excedente de capital para comprar alguns grãos maltados, preparar um lote de cerveja e espetar a tradicional vassoura do lado de fora da porta da frente para que seus vizinhos viessem beber um pint” (CORNELL, 2014). Dessa forma, esse fato parece indicar para o autor que o álcool era mais uma delícia do que uma ocorrência diária regular.

Assim, segundo Chevalier, a afirmação de que na Idade Média as pessoas bebiam cerveja em vez de água porque a água não era segura está totalmente errada. Mais do que isso, eu complementaria que a ideia da insalubridade dos núcleos urbanos, seu ar, sua água e seu terreno, parece ser mais adequada às aglomerações urbanas surgidas pós-revolução industrial (século XIX). São imagens de sujeira e miséria que transportamos para a Idade Média porque nos acostumamos a pensar sobre esse período como a “Idade das Trevas”. Uma estigmatização que os medievalistas se esforçam em combater há décadas. E apenas com relativo sucesso.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CORNELL, Martyn. Was water really regarded as dangerous to drink in the Middle Ages?. Zythophile. Disponível em: http://zythophile.co.uk/2014/03/04/was-water-really-regarded-as-dangerous-to-drink-in-the-middle-ages/

KUCHER, Michael. The use of water and its regulation in Medieval Siena. Journal of Urban History. Vol. 31, nº 4, maio 2005, p. 504-536.

RIBEIRO, Maria do Carmo. Espaços e arquiteturas de abastecimento na cidade medieval. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; SILVA, Gonçalo Melo da (editores). Abastecer a cidade na Europa Medieval. Lisboa: Tipografia Priscos, 2020, p. 383-402.

RÜCKERT, Fabiano Quadros. O abastecimento de água na perspectiva da historiografia europeia e hispano-americana. História: debates e tendências. V.17, jan./jun. 2017, p. 157-179.


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História

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