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A poetisa e a grumixama: A sutil união entre uma cerveja e a 1ª grande escritora brasileira

cecília meireles
Primeiro livro de Cecília Meireles completou 100 anos. E, misturando soturnez e simplicidade, Matisse fez uma cerveja para homenageá-lo

“A primeira grande poeta mulher de nossa literatura.” A definição da importância de Cecília Meireles, realizada por Leila V.B. Gouvea, doutora e pós-doutora em Literatura pela USP, denota o peso da autora e reforça a importância de uma efeméride completada em 2019: os cem anos do lançamento do seu primeiro livro.

“Espectros” surgiu em 1919 pelas mãos de uma jovem Cecília Meirelles. E, cem anos depois, inspirou um rótulo de cerveja que também carrega algum ineditismo. Afinal, ao utilizar o nome do livro em sua Blonde Ale com grumixama, a cervejaria Matisse quebrou uma tradição: se antes só lembrava grandes figuras e obras das artes plásticas nos seus rótulos, voltou-se agora para umas das principais escritoras da literatura nacional.

Simplesmente por ser a estreia de uma das principais autoras brasileiras, Espectros já mereceria a lembrança e a referência. Mas o livro não é só a apresentação de Cecília Meireles ao público. Anterior ao modernismo, a obra se destaca também pela precocidade – a autora estava com apenas 18 anos – e por guardar certa similaridade com os versos de Rainer Maria Rilke, um dos maiores poetas da história.

“O livro em questão tem feições pós-simbolistas e parnasianas, algo próximo de Rilke (mas certamente sem a força do poeta checo) e dos simbolistas portugueses, como Camilo Pessanha”, avalia Mariana Carlos Maria Neto, mestre pela USP com a dissertação A falta e o absoluto em Cecília Meireles.

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Apesar da precocidade da autora, Espectros já demonstra carregar como base um grande acervo de leituras, como destaca Leila, ao comentar sobre o livro de 17 sonetos. “Entre elas, as da Bíblia e de autores como o parnasiano francês François Coppée (autor da epígrafe do volume), Beaumarchais e possivelmente Yeats, Nietzsche e Mallarmé, entre outros. Convém lembrar que Cecília Meireles foi uma grande leitora ao longo de toda a vida, e deixou uma biblioteca com cerca de 12 mil volumes, em vários idiomas”, explica.

Além disso, a autora de Cecília em Portugal e Pensamento e “lirismo puro” na poesia de Cecília Meireles também destaca a presença de temas que marcariam a trajetória da autora. “Nos sonetos também nos deparamos com a escolha de certas palavras que se tornariam símbolos recorrentes em sua obra de maturidade, como noite, vento, sombra, nuvem, para citar algumas”, exemplifica Leila.

Mesmo sendo considerado um livro de “juventude”, Espectros carrega traços que evocam a trajetória literária de Cecília Meireles, com referências ao passado, usando a poesia como expressão da continuidade humana, o que a faz citar referências históricas como Cleópatra, Jesus e Joana D’Arc. “Já se vê a enorme inclinação de Cecília para o passado, cuja especificidade é expressada de forma um tanto fantasmagórica e mística, que se transforma no decorrer da carreira literária da autora”, destaca Mariana, ao comentar esse acesso a outros tempos.

A mulher e o Oriente
Essa valorização de grandes figuras históricas, aliás, levou a algumas avaliações de que Cecília, em sua estreia, poderia ter a intenção de exaltar a mulher. “O autor do prefácio de Espectros, Alfredo Gomes, que era professor de Cecília na Escola Normal do Rio de Janeiro, observou que vários sonetos tematizam figuras femininas (Cleópatra, Joana d’Arc, Inês de Castro etc.), o que poderia sugerir o estudo de perfis em uma época e em um ambiente ainda muito restritivos à atuação e à projeção da mulher”, diz a autora de dois livros sobre Cecília.

Também estão presentes referências orientais, como acrescenta Leila. “Um dos sonetos, ‘Brâmane’, que evoca o êxtase estoico de um místico hindu, já prenuncia suas pesquisas de textos literários e filosóficos orientais, que tanto impregnaram seu sentimento do mundo”, diz ela, lembrando ser esse um dos marcos da obra em prosa da escritora.

Espectros, porém, não foi incluído na própria bibliografia por Cecília, que o deixou de fora da sua poesia completa e da sua antologia. E só voltaria a ser editado em 2001, no centenário de seu nascimento. Por isso, não é das obras mais conhecidas da autora, embora carregue o peso de ter sido a sua “estreia”.

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Foi, portanto, o primeiro passo de uma escritora que construiu a sua trajetória na literatura brasileira ao enriquecer o modernismo com lirismo, magia rítmica, sonoridades sugestivas e mistério. “A meu ver, sua obra de maturidade a equipara aos grandes poetas de nosso modernismo, como Carlos Drummond de Andrade ou Manuel Bandeira”, aponta Leila.

O que a coloca como uma das gigantes da literatura brasileira é, portanto, essa “evolução” do modernismo, com a utilização de características simbolistas em sua produção, com uma poesia mais intimista, que trata muitas vezes sobre a passagem do tempo e utiliza a musicalidade. Mas sem ser “alienada”.

“Cecília deseja uma poesia elevada, apartada do cotidiano, envolta em símbolos e ritmos encantatórios. Ela é uma poeta que acredita no poder da tradição literária, mas sem conservadorismos aristocráticos e vazios; há em sua poesia um sentimento de continuidade com o passado”, acrescenta Mariana, especialista na autora de livros consagrados como “Romanceiro da Inconfidência”, “Ou isto ou aquilo” e “Viagem”.

O rótulo
A cerveja Espectros é uma Blonde Ale com grumixama, fruta brasileira que está sob risco de extinção. Ela está sendo vendida pela Matisse em garrafas de 500ml e a sua graduação alcoólica é de 4,9%. Mario Jorge Lima, sócio-fundador da marca, explica o que une o uso da grumixama e o poema Espectros, que abre o livro: o tom sombrio – ligando versos e o risco de extinção da fruta – e a presença de uma árvore como tema.

“Por pura coincidência ou por capricho dos deuses da arte, em frente à janela em que trabalho tem uma árvore de grumixama. O tom sombrio do soneto remete ao sentimento que temos diante de uma espécie ameaçada de extinção e, na última estrofe, à esperança de que possamos cuidar para que a espécie sobreviva”, afirma Mario Jorge, também explicando a razão para utilizar a grumixama na receita.

“A grumixama não está na Espectros somente pelo seu sabor e harmonia com o estilo, mas também pela esperança de resgatar o ingrediente e inspirar outros artesãos do sabor a utilizá-la em suas receitas e, com isso, promover o cultivo dessa fruta conhecida como a ‘Cereja Brasileira'”, acrescenta.

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Outro elo entre o poema e a cerveja, segundo Mario Jorge, está na valorização da simplicidade. “A beleza e o sabor vêm de coisas simples, mas escolhidas com cuidado e combinadas de forma harmônica. É assim em um soneto e também em uma receita de cerveja. A cerveja Espectros é feita de ingredientes simples, assim como Espectros é feito de palavras simples, embora nem todas sejam de uso comum atualmente.”

O fundador da marca explica, também, a opção de deixar por um instante as artes plásticas para valorizar uma escritora. “A arte não se manifesta de forma isolada. Cecilia Meireles também era pintora, embora seja mais conhecida na literatura”, conta Mario Jorge. “A arte é diversa, múltipla, democrática, assim como a cerveja.”

Além de lembrar a coleção de sonetos de Cecília, a Matisse colocou no rótulo um poema de Olavo Bilac dedicado a Antonio Parreiras, pintor que, assim como a cervejaria artesanal, também nasceu em Niterói.


Confira o poema Espectros, que abre a primeira obra de Cecília Meireles:

Nas noites tempestuosas, sobretudo
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremece tudo,

Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda.
Erguendo o olhar; exausto a tanto estudo,
Vejo ante mim, pelo aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda,

Da lâmpada à inconstante claridade
(Que ao vento ora esmorece ora se aviva,
Em largas sombras e esplendor de sois),

Silenciosos fantasmas de outra idade,
À sugestão da noite rediviva
– Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.

Defronte da janela, em que trabalho,
Nas horas quietas, em que tudo dorme,
Sobranceira e viril, como um carvalho,
Alevanta-se espessa árvore enorme.

O zéfiro em um momento escrepa um galho
À sua barba: e, ou seja que a transforme
O vento ou meu olhar, a árvore enorme,
Erguida ante a janela em que trabalho,

Toma a feição de uma cabeça rude,
Sonolenta e selvática oscilando
Numa estranha, fantástica atitude.

E, posta a contemplá-la, esta alma cuida
Ver sob o azul do céu, diáfano e brando,
A fronte erguer, leonina, o último druida.

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