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Entrevista: A cerveja está pomposa e chata, precisamos aproveitar melhor seu potencial

ronaldo rossi
Depois de lançar novo livro, em que fala sobre harmonização e cultura de boteco, Ronaldo Rossi avalia erros e acertos do mercado cervejeiro

A essência do ato de ir ao bar para se divertir com os amigos, interagir com desconhecidos e consumir uma boa cerveja pode ter se perdido ao longo do tempo. Essa é a avaliação do renomado chef de cozinha e sommelier de cervejas Ronaldo Rossi. Não à toa, ele tem como lema a expressão “mais cerveja, menos frescura”.

Foi pensando em todas as experiências que a cerveja nos bares pode provocar que ele lançou recentemente o livro “Ronaldo Rossi, botecando e harmonizando”, em que apresenta diferentes opões gastronômicas para serem consumidas junto com cervejas, passando por todo o território nacional através de alimentos e rótulos (para comprar o livro, clique aqui).

Se o livro apresenta alternativas de harmonização, Rossi avalia que o mercado ainda precisa evoluir muito, entendendo mais esse conceito. Além disso, critica a concentração de IPAs na produção de artesanais no Brasil. E fala que a cerveja precisa resgatar suas características originais.

“Estamos fazendo a cerveja ficar um treco ‘chato pra caralho’, tudo muito fresco, muito pomposo”, alerta Ronaldo Rossi. “Para, mano. Cerveja é ‘legal pra caralho’. E a ideia do menos frescura é essa: aproveitar tudo o que a cerveja pode oferecer, que vai muito além do copo; tem a experiência, de ter gente junto, de curtir.”

Confira, a seguir, a entrevista completa com Ronaldo Rossi, chef de cozinha, sommelier de cervejas, sócio da Cervejoteca e autor do livro Ronaldo Rossi, botecando e harmonizando.

Leia também: Bebida do povo – Contra elitização, Bahia e Brahma se unem por cerveja a R$ 1

O livro apresenta um trabalho extenso, com mais de 60 cervejarias de diversas regiões envolvidas. Como surgiu a ideia do livro, como tais cervejarias foram selecionadas e como contribuíram para a obra?
Eu demorei uns quatro anos para começar. O projeto original acabou sendo muito diferente do que é hoje, teria inicialmente uma parte mais técnica. Mas eu percebi que ainda falta informação básica para a galera. E não tem nada mais simples e acessível do que o boteco. Por isso parti para essa ideia da botecagem. A partir disso, primeiro eu escolhi as receitas a partir das divisões nacionais, porque estamos falando de um país continental, o que torna tudo mais difícil. Então, imaginei coisas locais, como costeleta de pacu, que é sensacional e como toda vez que vou ao Mato Grosso – mas só é possível comer lá. Ou o canapé de linguiça Blumenau, que só tem na região, a carne de onça, que só encontra em Curitiba. Então, a ideia inicial era buscar essas coisas locais, como o caldo de sururu, no Nordeste. Busquei coisas típicas e uma apresentação que não ficasse em uma ordem desequilibrada. Então tem um pouco de carne, de frango, de sanduíche, de fritura e por aí vai.

E, seguindo essa linha, como foram surgindo os convites para as cervejarias?
Feito esse trabalho inicial, eu parti para as divisões técnicas de harmonizações e criei uma série de possibilidades. A partir dessas possibilidades, eu tentei trabalhar primeiro questões regionais e depois culturais. Na maior parte dos casos eu consegui, como a linguiça Blumenau, onde houve um próprio convite à Cervejaria Blumenau. E a Dogma também, quando falo da questão do sanduíche de mortadela que tem toda relação com São Paulo. Já o caldinho de sururu eu peguei a Ekäut, do Nordeste. E, da mesma forma, chamei a 5 Elementos para falar do escondidinho de carne seca. Então, os convites foram todos nesse sentido. E tem também a parte da proximidade, porque conheço muita gente, faço eventos, desenvolvo cerveja junto.

Pensando em toda essa questão culinária envolvendo a multiplicidade cultural e regional, você acha que o mercado de cerveja artesanal aproveita bem esse potencial? E o que pode ser feito para melhorar essa relação?
Estamos muito longe disso, dá pena. Chovemos demais no molhado e uma coisa acaba puxando a outra, às vezes de forma negativa. No mercado, hoje, temos uma explosão de IPAs, com a maior parte dos ciganos trabalhando sua linha – quase 90% dela – com a IPA. E quando você envolve a IPA como o estilo mais tradicional, mais popular entre os cervejeiros, fica difícil falar em harmonização. É muito mais fácil buscar outros estilos menos lupulados, pensando na questão da harmonização, do que o lúpulo.

Como essa saturação de IPA acaba interferindo nesse cenário?
Neste caso, quem sai ganhando é quem tem planta própria. Por mais que elas tenham a IPA na sua linha, elas não vão ter tanto reforço de lúpulo em suas receitas como as ciganas, que precisam fazer isso para vender um pouco mais. É uma pena. Dando aula, por vezes, eu pego cartas de cervejas harmonizadas onde há a orientação de comer hambúrguer com IPA. Isso não vai dar certo nunca, em nenhum lugar do mundo. O pessoal insiste, mas nunca vai funcionar. Isso é chover no molhado.

E o que pode ser feito para reverter isso?
A gente precisa sair da casinha, precisa abrir o coração. Vamos nos permitir hoje não tomar uma IPA e ver como esse universo pode ser bacana. Você ganha muito mais com essa possibilidade de mostrar esse tipo de variação para, por exemplo, um consumidor de vinho, que não conhece nada. É muito comum quando faço evento corporativo o pessoal chegar e dizer “eu sou do mundo do vinho, não sou daqui”. E aí falo “senta aí, curte com a gente, vem de coração aberto”. E funciona, ele gosta. Já o cara da cerveja chega de coração fechado, armado para não gostar. É uma pena.

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Seguindo um pouco essa linha do erro da IPA, e pensando no aspecto da botecagem, quais os demais erros conceituais que o mercado comete hoje na questão da harmonização? O que dificulta para, pela comida, aproximar o botequeiro do mercado de artesanais?
O que falta é o entendimento do que é a harmonização. É começar do princípio mesmo, e a história do hambúrguer com a IPA é um exemplo perfeito disso. Quando você vai em um boteco padrão, o cara vai te servir tremoço, frango à passarinho, ovo colorido, salame. E, para tudo o que você pedir, o cara vai te dar uma Light Lager, uma American Lager. A gente se acostumou com aquilo e vai que vai, intercalando com uma cachaça, uma caipirinha. O que acontece é que o cara não entende a diferença de harmonizar e servir junto. E, neste caso, ele está servindo junto, da mesma forma que seria uma Coca-Cola. Existe esse conceito maior de harmonização e bato nessa tecla desde a minha primeira turma – e essa frase até passou a ser amplamente utilizada por aí, e quero que continue sendo: harmonizar é pegar dois ingredientes que funcionam muito bem individualmente, mas juntos eles são melhores. É o conceito de melhorar a experiência.

E como isso pode ser aplicado na prática, pensando no mercado de artesanais?
Se eu estou servindo frango à passarinho, salame, tudo aquilo lá que falei, com a mesma cerveja, certamente algo não vai dar certo. Com algo até pode ficar perfeito, mas com outro vai ficar horrível. E o que podemos fazer em um caso como esse? Hoje temos o acesso a uma quantidade muito grande de rótulos, e fica até fácil falar sobre isso. Você vai em qualquer loja mediana de cerveja e lá terá, pelo menos, 60 rótulos. Se o proprietário, se o sommelier dessa casa fugir um pouco do óbvio e não trabalhar só com variação de IPA, ele vai conseguir harmonizar. E aí vai conseguir, também, trabalhar a evolução dos pratos. Então aí começa com uma azeitona, um pastel de queijo, com algo que tenha uma intensidade pequena. E aí evolui para uma porção de calabresa flambada ou acebolada, ou um molho mais intenso, um empanado, algo mais picante. Entendendo isso, você consegue criar uma experiência total, não só de um único prato, de uma única cerveja. Falta, no mercado brasileiro, por vezes, entender que a experiência é bem mais ampla.

Que rótulos podem servir de apoio nesses casos?
É importante voltar para a história do coração aberto. Quando chega a isso, todo mundo gosta. É muito fácil fazer isso até com coisas bobas, uma polenta frita, uma mandioca frita, uma batata. Ao invés de oferecer uma American Lagar, oferece uma Vienna Lager. A experiência é muito maior, porque você está emprestando uma camada de sabor muito maior, baseada em um início de tosta, com uma base de caramelo – e você já tem isso naturalmente na base da fritura. Você vai potencializar ela. E é uma cerveja super simples, super fácil de tomar. Não conheço ninguém que tome uma Lager, uma Pilsen, que vá fechar a cara para uma Vienna Lager. É muito próximo. Falta a iniciativa. Tendo ela, a pessoa vai seguir nesse caminho.

O livro tem como um dos lemas a frase “mais cerveja, menos frescura”. De onde ele veio e como ele está relacionado com a sua trajetória de chef e cervejeiro?
Eu não lembro quando falei exatamente isso pela primeira vez. Mas lembro que foi muito perto da história do “beba menos, beba melhor”. É legal essa história, mas a gente curte botecagem, a gente curte enfiar os três pés na jaca. Você vai até a página três, quatro, nessa de beba menos, beba melhor, mas daí para frente…

Tem um vídeo meu de 2011 em que falo: estamos perdendo a mão da cerveja. Fizemos a cerveja ficar um treco “chato pra caralho”, tudo muito fresco, muito pomposo. A gente esquece que a cerveja é a bebida em que você faz o brinde sorrindo. Nas outras bebidas têm o brinde formal, aquela cara fechada, sorrindo de leve. E na cerveja a galera bate, comemora, levanta, gargalha. A cerveja á algo muito social, muito agregador. Mesmo quando você está tomando sozinho no boteco você faz o brinde com a garrafa, só para não deixar de ter o brinde. E aí você vai perdendo isso em função de deixar tudo muito formal. Precisa ser o copo certo, a temperatura certa, não pode ter barulho. Para, mano. Cerveja é “legal pra caralho”. E a ideia do menos frescura é essa: aproveitar tudo o que a cerveja pode oferecer, que vai muito além do copo; tem a experiência, de ter gente junto, de curtir. Fecho todas as minhas palestras com essa frase até hoje.

Pensando nessa cerveja menos chata, você acha possível sonhar com a artesanal quebrando barreiras e se tornando uma cerveja de botequim, onde as pessoas brindam como se fosse uma Skol?
Nosso maior problema é o custo-Brasil. Ele não permite. Quando você chega no padrão norte-americano, que é nossa maior referência, nossa maior proximidade, o consumidor paga US$ 0,75 em uma cerveja popular e, na primeira linha das craft beer, perto de US$ 1,25, US$ 1,30. Aqui ele vai sair de R$ 3, R$ 4, em uma Skol para quase R$ 20 em uma latinha de artesanal. Isso assusta. É muito comum alguém entrar aqui na loja, acompanhando um consumidor de cerveja, e dizer: “o que você vai pagar nessa cerveja eu compro um fardo”. O custo não permite ainda chegarmos tão longe.

Hoje existe uma migração da garrafa para o chope, e ele consegue chegar com um preço bem mais viável, bem mais possível. E esse preço começa a abrir portas. Você vai sentar em um boteco pé sujo qualquer para pagar R$ 11, R$ 12, em uma Brahma, que é um valor que a gente consegue trabalhar em uma Pilsen puro malte, em uma Weiss, em uma Vienna. Esse custo mais baixo é a principal barreira que podemos quebrar. Passado isso, ninguém volta. Quem pode tomar uma cerveja boa, vai tomar. Se alguém pode tomar uma Orval, não tem porque tomar uma Skol. Não vai. A grande sacada é fazer o sujeito chegar e conseguir ficar. Se ele consegue, é um caminho totalmente sem volta. Se tivesse menos custo-Brasil, se fosse a metade do que custa – nem precisa ser a proximidade norte-americana -, todos estariam felizes e contentes.

2 Comentários

  • JOCA Reply

    10 de outubro de 2019 at 16:35

    Bela entrevista. Acrescento aos comentários do Chef o lema da Cervejoca – Vem Viver, Vamos Cervejar.
    Cheers – Joca Cervejoca

  • Kleber Ribeiro Reply

    16 de outubro de 2019 at 13:48

    Acho valida a visão de um especialista e também a respeito, mas acho dizer que o hábito de beber cerveja estar chato e formal, é uma peecepcao muito limitada da realidade. Minha percepção é bem diferente. Creio que o brasileiro esta aprendendo a conhecer um espectro maior da cerveja, mas que o público das american corn lagers sempre existirá, como mesmo os tomadores de cervejas premiuns, também tomará as padrões em uma praia, churrasco ou encontros ocasionais. De verdade, não tenho essa percepção.

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