Cauim mantém cultura dos povos indígenas viva e resgata ancestralidade
Os povos indígenas no Brasil têm resistido há anos diante das tentativas de apagamento de sua história, do genocídio e da ocupação das suas terras. Neste cenário, o respeito, a honra e o resgate da ancestralidade são manifestações importantes para assegurar a continuidade de suas culturas, fazendo parte do cotidiano das comunidades, como através da produção do cauim, uma cerveja ancestral.
O Brasil conta, hoje, com mais de 300 povos indígenas identificados, além daqueles isolados, que não possuem contato com o restante da sociedade. Muitos deles produzem o cauim, que leva mandioca e água em sua receita, com algumas comunidades usando melaço de cana-de-açúcar ou até o próprio açúcar.
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“A nossa cultura é diversa. Tradicionalmente, o cauim era feito mastigando a mandioca. Depois que ela [mandioca] estava um pouco mole, as mulheres mastigavam e colocavam num balde de cerâmica ou de barro para poder fermentar”, explica Tukumã Pataxó, estudante de gastronomia, comunicador e influenciador digital. “Quanto mais tempo passar fermentando, maior será o teor alcoólico”, acrescenta.
Com o tempo, a forma de preparo do cauim se diversificou, como conta Tukumã, que é do povo pataxó, localizado no extremo sul da Bahia. “Hoje em dia, não passa mais pelo processo de mastigação dentro do meu povo. E os homens também fazem o cauim no processo de amassar”.
Na produção do cauim pelo povo pataxó, a mandioca é amassada com as mãos e inicialmente reservada em um recipiente para sua fermentação por dois a três dias. Neste período, é feita somente a troca da água. “De dois a três dias de fermentação, é para tomar no dia a dia, tanto por crianças quanto por adultos [podem tomar], porque não tem teor alcoólico”, explica.
Segundo ele, a partir do sétimo dia, o cauim começa a fermentar ainda mais, passa a ter teor alcoólico e vira uma bebida para ser consumida em festividades e rituais, como forma de união nas cerimônias de casamentos e no ritual da lua cheia.
O preparo do cauim também pode ser feito com milho, mas o povo pataxó manteve a utilização da mandioca, como conta Tukumã. “Ela é o segredo para tudo. Dentro do meu povo, somente ela é usada. Para adoçar, como antigamente não tinha essa questão do açúcar, era usado o mel ou melado de cana. Hoje em dia, se coloca um pouco de açúcar por quem gosta. Quem não gosta, toma da forma tradicional, que é sem açúcar”, comenta.
Dentro do povo pataxó, além do cauim, também existem outras bebidas com importância espiritual, como o chá da folha da jurema. “A culinária indígena sempre tem seu significado. Significado de proteção, de fortalecimento espiritual, de cuidado…”, completa Tukumã.
Desconstruindo preconceitos
Comunicador, ativista, formado em gastronomia e influenciador digital, Tukumã, de apenas 23 anos, possui forte atuação na internet, buscando desconstruir narrativas cheias de estereótipos e preconceitos em relação às comunidades indígenas.
Ele conta que seu trabalho começou com a perspectiva de mostrar o olhar e a realidade de seu povo para o mundo. “Estudei gastronomia justamente para mostrar essa diversidade da culinária tradicional indígena e o quanto ela está no dia a dia do povo brasileiro, embora não seja reconhecida”, comenta.
Tukumã começou no universo digital com um canal no YouTube, em 2014, mas só ganhou visibilidade em 2020, durante a pandemia da Covid-19, quando um vídeo viralizou no Twitter.
Atualmente, o Instagram é a principal rede de Tukumã que tem mais de 222 mil seguidores, que acompanham o seu dia a dia. “Começou como uma forma de ‘aliviar’ porque estava cansado de escutar as mesmas perguntas, os mesmos sarcasmos, as mesmas piadas e ficar calado e responder só a uma pessoa”, diz.
A ideia de Tukumã era que, com as postagens na internet, pudesse alcançar mais pessoas, as ajudando a aprender mais sobre os povos indígenas. “Foi dessa forma que comecei a produzir. Uma forma de discutir bem e estar desabafando. E consegui trazer, também, para a questão do humor”, afirma.
Tukumã explica que seus conteúdos são produzidos para serem bem-humorados e debaterem questões como preconceitos e estereótipos. “Por exemplo, ‘índio’ e ‘tribo’ são termos estereotipados. E mostramos essas questões de outra forma, como: não se fala mais índio, é indígena, e não se pode falar mais tribo, é comunidade, aldeia, povo… Usamos do humor para poder desconstruir e alcançar outro público, que vai da criança ao adulto.”
A sociedade brasileira e o desconhecimento da cultura indígena
Atuando na internet diariamente falando sobre a cultura dos povos indígenas, Tukumã lamenta que falte conhecimento aos brasileiros sobre o assunto. “Que as pessoas conheçam a verdade da nossa história, sobre quem somos, onde estamos e o respeito também. Hoje em dia, eu vejo isso. Só de postar um vídeo na internet vem vários comentários maldosos. Eu ainda fico surpreendido com a ‘bolha’. Parece que estamos tão avançados, mas ao mesmo tempo estamos atrasados nestes pensamentos. Falta isso: aprender mais sobre a verdadeira história do nosso país”, conta.
Ele lembra que originalmente o Brasil era um território habitado apenas pelos povos indígenas.
Hoje em dia, a população indígena não é nem 10% da população que tinha antes da colonização e nem 2% da população brasileira. Quantos povos indígenas já foram dizimados, para, assim dizer, a ‘evolução’ do nosso país?
Tukumã Pataxó, estudante de gastronomia, comunicador e influenciador digita
A crise humanitária
O genocídio dos povos indígenas no Brasil teve início com a colonização do país pelos portugueses. Desde então, eles buscam resistir, em uma luta pelo direito de permanecerem em suas terras e manterem vivas a cultura ante a exploração e o extermínio. Recentemente, a luta dos ianomâmis ganhou visibilidade internacional devido aos impactos da ação de garimpeiros na região da Terra Indígena Ianomâmi, que conta com mais de 30 mil habitantes, em um chocante cenário de desassistência sanitária e nutricional.
De acordo com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a Terra Indígena Ianomâmi é morada dos povos indígenas ianomâmis e ye’kwana, com os primeiros contatos com o restante da sociedade tendo ocorrido entre 1910 e 1940. E uma grave crise sanitária foi desencadeada no final dos anos 1980 pela entrada de garimpeiros na região.
Desde então, o território, que fica no Amazonas e em Roraima, é impactado pelo desmatamento e mineração ilegal, contaminação por mercúrio, que atinge não somente os rios da região, mas também o solo e os animais, impactando diretamente na alimentação indígena, que é composta principalmente pela pesca, caça, coleta de frutos e raízes, além da agricultura.
Ao longo dos anos, os ianomâmis têm sofrido com a insegurança alimentar e desassistência de saúde, além da violência dos garimpeiros, em especial às mulheres e crianças, com denúncias de assassinatos, agressões e estupros. Dados recentes mostram elevados indicadores de mortalidade infantil, além de casos de infecção respiratória aguda, diarreia, malária e tungíase.
Diante da crise humanitária, o governo federal vem se mobilizando para ajudar os ianomâmis com a execução de ações, o que incluiu a declaração de emergência médica pelo Ministério da Saúde, assim como a sociedade civil, que tem buscado dar visibilidade à causa.
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