Entrevista: Randy Mosher fala sobre cerveja brasileira e equilíbrio entre teoria e prática
A cena cervejeira brasileira recebe, no final do mês, uma visita ilustre: Randy Mosher, um dos “papas” das cerveja artesanal dos Estados Unidos, volta ao país após sua última visita, em 2015. De lá para cá, muita coisa mudou no cenário cervejeiro nacional e Mosher tem acompanhado de longe a evolução. No entanto, sua percepção é de uma cultura efervescente e repleta de possibilidades.
“Honestamente, eu sinto um pouco de inveja dos ingredientes que vocês têm disponíveis, eu adoraria poder usar algo como madeira de imburana ou cupuaçu”, revela o autor do clássico e muito influente Radical Brewing, de 2004.
Sua agenda no Brasil inclui uma série de palestras promovidas pela editora Krater, que publica sua obra aqui, em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Além disso, Mosher estará presente na 15ª edição da Brasil Brau e no Mondial de là Bière SP, atuando como jurado e trazendo a público receitas colaborativas desenvolvidas com cervejarias brasileiras.
Mosher falou com exclusividade ao Guia, trazendo seu olhar sobre o mercado nacional, criatividade e persistência na busca pela receita ideal. Confira a entrevista na íntegra.
Qual é a sua relação e experiência com o mercado brasileiro de cerveja artesanal?
Esta será, eu acho, minha sexta viagem ao brasil. Eu comecei a vir pra cá em 2009. Naquela época a indústria de cerveja artesanal era bem pequena. A Eisenbahn e algumas das mais antigas e mais bem sucedidas tinham acabado de ser compradas pela Schincariol. Mesmo com poucas cervejarias artesanais, na Brasil Brau havia um número considerável de cervejeiros artesanais caseiros, que faziam cervejas na garagem como um meio de começar um negócio de menor escala. Eu fiquei impressionado com essa energia vívida e com esse empreendedorismo. Cenas de cerveja artesanal que são respaldadas pela cultura ativa de cervejeiros caseiros são, geralmente, mais fortes e mais bem sucedidas, pelo que já pude ver em minhas viagens. Esta certamente foi a história das cervejas artesanais nos Estados Unidos.
O que você acha dos rumos que o mercado brasileiro tomou?
Eu não vou para o Brasil desde 2015, então eu perdi bastante. Mas pelo que eu fiquei sabendo, a cerveja artesanal continua a se expandir, embora eu saiba que por vários motivos ainda é uma parte pequena do mercado. Eu comecei a trabalhar com o Marcelo Carneiro da Rocha, na Colorado, em 2006. Embora eu estivesse atuando principalmente no branding e nas embalagens, eu também tentei encorajá-lo a fazer cervejas mais brasileiras em termos de ingredientes e aspecto, usando, por exemplo, açúcar de rapadura na IPA. É um ingrediente característico local, com uma conexão histórica com a IPA, deixa o corpo mais leve, mais refrescante e com maior drinkability.
Eu sou o autor de Radical Brewing, e um dos significados de “radical” é ligado às raízes. Então, para mim, uma coisa lógica que tem sido feita durante a história da fabricação de cervejas artesanais até a era industrial é adicionar todo tipo de ingredientes locais e sabores disponíveis.
Você pode apontar alguma característica específica da cervejaria artesanal brasileira?
Em uma perspectiva geral, não. Eu vejo muito a cervejaria artesanal como um fenômeno global, e cervejeiros artesanais em todos os lugares compartilham características comuns em suas relações com as cervejas, negócios e vida. Em termos de sabores específicos, claro que há alguns únicos do Brasil, e tem sido empolgante ver como isto está sendo desenvolvido.
O Brasil é um país muito rico em seu povo, culinária e, claro, recursos biológicos. Você tem um vasto tesouro para explorar, o que eu acho muito excitante. Honestamente, eu sinto um pouco de inveja dos ingredientes que vocês tem disponíveis, eu adoraria poder usar algo como madeira de imburana ou cupuaçu em cervejas na minha 5 Rabbit Cervecería em Chicago.
E, é claro, seus cervejeiros tem muitos desafios: distribuição, infraestrutura (como estoque e transporte refrigerado), regulamentação do governo, disponibilidade e custo de ingredientes, e um sistema enorme e injusto de tributação da cerveja que pune o empreendedorismo e recompensa a escala.
Recentemente a BJCP reconheceu Catharina Sour, uma criação brasileira, como um estilo. Você já experimentou? Como ela se caracteriza em termos de criatividade, na sua opinião?
Sim, eu a conheço, mas ainda não experimentei. É um exemplo perfeito do que eu estava falando agora pouco. Eu espero ver muitas mais. É interessante ver, dentre tantas inovações, quais os bebedores vão escolher e dizer “faça mais desta, por favor.” Esta é a interação que reina hoje em dia, e os produtores de cerveja nem sempre serão quem vai determinar o caminho a ser tomado.
O Brasil tem passado por uma revolução da cerveja artesanal nos últimos anos. O número de microcervejarias e artesanais cresce rápido, assim como os cursos de produção, degustação, sommelier… Você vê alguma similaridade entre a nossa situação atual e o processo que os Estados Unidos passaram?
Sim. No início, começar um movimento de cerveja artesanal parece simples: é só fazer algumas cervejas boas e as pessoas virão. Mas é, na verdade, muito difícil, pois uma indústria saudável requer diferentes partes e elementos, e alguns deles – como conhecimento em degustação e expertise – demoram para atingir um ponto significativo. Estou feliz em saber que isto continua a crescer no brasil. Eu conheci algumas pessoas envolvidas nesse esforço, e eles são um grupo dedicado. Meu amigo Ray Daniels tem se esforçado para que o programa Cicerone se estabeleça no país, e isto significa falar em patamares de conhecimento muito elevados na qualificação de pessoas como experts em cerveja em vários níveis.
O que podemos aprender com a experiência dos Estados Unidos?
Bom, tudo e nada ao mesmo tempo. Eu acho que para as cenas cervejeiras mais novas de fora dos Estados Unidos, é claro que somos o modelo. Mas ao mesmo tempo a situação econômica, recursos e cultura variam. De alguma forma todo país tem que descobrir como produzir em seus próprios termos e para seu publico. Eu acho que a maior coisa que o cenário de cervejas artesanais dos Estados Unidos fez foi demonstrar que é possível, e que com tempo e dedicação suficientes a cerveja artesanal pode crescer e tornar-se um setor significante. E claro há uma colaboração entre os cervejeiros norte-americanos como Garret Oliver e muitos outros vem, interagem, colaboram e trocam ideias.
Que conselhos você daria para os cervejeiros quanto ao equilíbrio de conhecimento técnico e experiência empírica na busca por cervejas únicas?
Eles andam juntos, claro. É sempre útil pesquisar algum ingrediente, se há algum artigo científico que analisa seu aroma e outros aspectos, e tentar aprender o que é mais importante. Mas há limites para isso, quando falamos em colocar coisas na cerveja, há pouca informação disponível. Então você realmente tem que criar uma base de conhecimento quando você quer ir atrás dessas coisas. Nós tentamos vários experimentos pequenos, onde tentamos várias coisas diferentes em uma cerveja. Nossas pipetas são bastante usadas, medimos cautelosamente os experimentos e tentamos várias coisas numa escala de 100 mL antes de fazermos a conta e adicionarmos num lote maior.
Qual é a importância dos erros e experiências mal sucedidas numa jornada em direção a uma receita realmente boa?
Cervejas mal sucedidas nos ensinam muito. Fazer qualquer tipo de cerveja de qualidade numa escala comercial é sempre desafiador, e quando você começa a adicionar coisas como fruta e madeira, tona-se ainda mais desafiador. Nosso objetivo, em ambas as minhas cervejarias, é sempre criar cervejas que rapidamente se configuram como algo de um caráter único, e conforme você vai bebendo, elas se revelam camada por camada conforme o tempo. É um desafio, mesmo na teoria, chegar às quantidades corretamente, acertar a acidez, textura e etc.
E em termos práticos, cada ingrediente tem sua própria química, mesmo um único ingrediente pode ter uma dúzia de moléculas de aromas primários e mais cem que podem contribuir para sua característica geral. E substâncias querem dizer química, e coisas para mudar na cerveja em vários aspectos e ao longo do tempo. Muitos ingredientes contêm substancias indesejáveis que podem ser azedas, amargas e tânicas, e você tem que saber lidar com elas. Recentemente nós ficamos surpresos com uma cerveja de cereja que ficou muito amanteigada (diacetil) depois de muitos dias no tanque.
Acontece que as cerejas e algumas frutas contém muito do precursor para o diacetil, então depois de algum tempo aquele precursor se transformou quimicamente em um sabor amanteigado. Nós também aprendemos que há uma enzima que previne este problema, então da próxima vez será melhor. Mas honestamente tinha um bom sabor, como se fosse uma cerveja de “strudel de cereja”.
Então é um misto de entender seus ingredientes muito bem, e de encontrar oportunidades durante seu processo de corrigir seu curso e fazer adições no final para trazer as coisas de volta ao equilíbrio. Fazer uma simples cerveja de morango, por exemplo, não é nada simples. Morango é um sabor muito complexo; a cerveja muda o equilíbrio do aroma; a cor e aspectos do sabor são perdidos conforme o tempo; e a quantidade de purê de morango que você tem à disposição para colocar em uma cerveja comercial não será suficiente para reproduzir a cor ou acidez da experiência de morder um morango fresco, que é claro, é a expectativa de quem bebe. Nós gastamos muito tempo com coisas como essas, e demora um pouco, alguns lotes, na minha experiência, para conseguir fazer exatamente o que queremos, perfeitamente certo.
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