Balcão do Tributarista: Milho na cerveja e o Padrão de Identidade e Qualidade
Embora o foco principal de nossa coluna seja a tributação do setor cervejeiro, pedimos licença ao leitor para tratar de um tema que foge um pouco destas questões, mas que apresenta grande importância. Trata-se da nova regulamentação acerca do Padrão de Identidade e Qualidade (PIQ) das cervejas.
No Brasil, é a Lei nº 8.918, de 14/07/1994, que estabelece a obrigatoriedade do registro, da padronização, da classificação, da inspeção e da fiscalização da produção e do comércio de diversas bebidas, dentre as quais as cervejas, atribuindo a competência para estas ações ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Coube ao Decreto nº 6.871, de 04/06/2009, a função de regulamentar a referida Lei nº 8.918, dispondo de forma mais específica acerca das disposições contidas em tal Lei, bem como regulando de forma mais concreta as relações jurídicas dela decorrentes.
Ocorre que, através do Decreto nº 9.902, de 08/07/2019, publicado no Diário Oficial da União desta terça-feira, o Presidente da República realizou diversas alterações no Padrão de Identidade e Qualidade (PIQ) das cervejas previsto no indigitado Decreto nº 6.871.
A primeira mudança está na própria definição jurídica do conceito de cerveja. A redação original do Decreto nº 6.871/2009 previa, no artigo 36 de seu Anexo, que “cerveja é a bebida obtida pela fermentação alcoólica do mosto cervejeiro oriundo do malte de cevada e água potável, por ação da levedura, com adição de lúpulo”.
Agora, com a modificação introduzida pelo recente Decreto nº 9.902/2019, passa a ser considerada cerveja “a bebida resultante da fermentação, a partir da levedura cervejeira, do mosto de cevada malteada ou de extrato de malte, submetido previamente a um processo de cocção adicionado de lúpulo ou extrato de lúpulo, hipótese em que uma parte da cevada malteada ou do extrato de malte poderá ser substituída parcialmente por adjunto cervejeiro”.
Mudanças
À primeira vista, parecem não haver grandes mudanças com esta alteração. Contudo, as principais implicações, a meu ver, não decorrerão da mudança de redação do dispositivo acima transcrito, mas sim da revogação de diversas outras disposições do Decreto de 2009.
É que o recém-publicado Decreto nº 9.902/2019 revogou, expressamente, diversos dispositivos do Decreto nº 6.871/2009, dentre os quais o parágrafo quarto do já referido artigo 36, que previa a limitação para uso de adjuntos cervejeiros em 45% em relação ao extrato primitivo.
Este certamente é o ponto mais polêmico das alterações. Há quem defenda que, na realidade, não teria havido a eliminação do limite de uso de adjuntos, uma vez que a Instrução Normativa (IN) nº 54, de 05/11/2001, do Mapa, que também prevê esse limite de 45% para adjuntos, não teria sido revogada pelo Decreto publicado em 09/07/2019.
Contudo, nosso entendimento é de que, neste momento, não há limite algum para o uso de adjuntos cervejeiros. Devemos tomar por base a premissa de que nosso ordenamento jurídico é, como deve ser, organizado sob a forma de um sistema, com as normas postas em escalões hierárquicos, onde as de escalão mais baixo encontram nas de escalão mais alto seu fundamento de validade. Assim, as Instruções Normativas, Portarias e outros atos infralegais, devem buscar seu fundamento de validade na Lei ou no Decreto a que se reportam, não podendo desbordar dos limites que estes atos legais em sentido amplo lhes impõem.
No caso em tela, a IN nº 54 do Mapa se reporta à Lei nº 8.918/1994 e ao Decreto nº 6.871/2009. Enquanto havia em tal Decreto a previsão de limite para utilização de adjuntos, perfeitas as proposições da IN no mesmo sentido. Porém, com a revogação de tal limite, entendemos que a IN nº 54, assim como qualquer outro documento infralegal, não pode mais continuar limitando a utilização dos adjuntos, na medida em que estaria “regulamentando” disposição inexistente no ato legal que lhe dá suporte e serve como fundamento de validade.
Cabe destacar que o Decreto nº 9.902/2019 traz uma nova disposição no sentido de que a adição de adjuntos deverá ser regulamenta em atos específicos. Assim, seguindo a linha acima exposta, concluímos que, enquanto não houver esta regulamentação, não há limite vigente para a utilização de adjuntos na produção de cervejas.
Outra modificação no Padrão de Identidade e Qualidade das cervejas que merece destaque é a possibilidade de utilização, a partir de agora, de adjuntos de origem animal (como, por exemplo, mel), sem mais a necessidade de indicação de “bebida mista” no rótulo. O que deverá constar no rótulo, de forma clara e expressa, é qual adjunto ou qualquer outro ingrediente que foi utilizado ou adicionado à cerveja.
As disposições até então existentes acerca da classificação das cervejas quanto ao extrato primitivo, à cor, ao teor alcoólico, à proporção de malte de cevada e à fermentação; bem como as vedações de adição de álcool no processo de produção, substituição de lúpulo por outro princípio amargo, adição de água fora das cervejarias, utilização de aromatizantes, corantes artificiais e estabilizantes químicos também foram revogadas pelo Decreto nº 9.902.
Diante de tantas e tão significativas mudanças, acreditamos que o melhor para o setor cervejeiro seja a regulamentação destas alterações introduzidas no ordenamento pelo Decreto nº 9.902/2019 o mais breve possível, pois este cenário de dúvidas e posições, a princípio, divergentes, serve apenas para gerar insegurança jurídica.
Clairton Kubaszwski Gama é advogado, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET) e sócio do escritório Kubaszwski Gama Advogados Associados.
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