Rótulo da Nacional e tragédia social: A atemporalidade de Lélia Gonzalez
Mulher, negra, filósofa, professora, militante e periférica, Lélia Gonzalez carrega essas centralidades e características em sua trajetória, o que a torna uma figura fundamental para entender o Brasil em profundidade. Algo reconhecido pela escolha para ser a homenageada de 2021 de uma iniciativa da Cervejaria Nacional para valorização da presença feminina no setor. E, infelizmente, por mais uma vida negra interrompida no país.
Aos 24 anos, Kathlen Romeu, mulher, negra, com uma recém-descoberta gravidez, foi morta nesta semana em meio a uma ação policial no Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio, sendo mais uma vítima da tragédia cotidiana que também havia levado João Pedro, em 2020, e feito o STF restringir ações policiais durante a pandemia.
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A exclusão dos negros e a violação dos direitos humanos são, assim, temas urgentes e presentes na formação da sociedade brasileira, como trabalhado por Lélia Gonzalez em sua atividade intelectual. O que inclui a consolidação do conceito de amefricanidade, para relembrar os efeitos da dominação europeia, além da sua crítica ao racismo estrutural, como lembra, ao Guia, Sara Araújo, sommelière de cervejas e acadêmica de Ciências Sociais. Para ela, o colonizador europeu, além de dominar e controlar os corpos nativos, também tomou conta do imaginário.
“Foi uma das primeiras teóricas a denunciar a exclusão dos povos negros e povos originários do tecido social brasileiro. Diante disso, criou o conceito amefricanidade, que fala sobre a experiencia comum de mulheres e homens negros da diáspora na América. Fala, também, da experiencia dos povos originários nas Américas”, detalha Sara, sobre os pensamentos de uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado e do Olodum.
Em 2021, Lélia Gonzalez, pioneira nos estudos da cultura negra no Brasil, foi a homenageada pela Cervejaria Nacional no projeto Musas do Versão. Nele, a marca convida mulheres que atuam no setor cervejeiro para criarem uma sazonal com o intuito de dar uma resposta à baixa representatividade feminina nesse nicho.
Dessa vez, então, a Nacional convidou Eneide Gama e Melissa Miranda, ambas da Cervejaria Benedita, e Carol Chieranda, da Cervejaria Trilha. Juntas, elas criaram a Lélia, uma Saison leve e aromática, preparada com seriguela e manjericão-limão. Como a Musas do Verão tem o objetivo de dar visibilidade para a luta das mulheres, enaltecendo o trabalho delas, o trio responsável pela criação considerou até natural a definição de Lélia Gonzalez como homenageada da vez.
“A escolha de homenagear Lélia a partir dessa cerveja veio, principalmente, das propostas e reflexões importantíssimas que a filósofa promoveu para a interpretação da nossa população e suas identidades. A luta e presença acadêmica de Lélia Gonzalez, ao nosso ver, merecem mais notoriedade, já que notamos pouquíssimos ambientes em que seu nome corre livremente em contraste com a importância de sua obra e militância”, afirmam, ao Guia, Eneide Gama, Melissa Miranda e Carol Chieranda.
O pensamento de Lélia
Essa representatividade que a Nacional buscou dar para Lélia Gonzalez ao homenageá-la em uma série elaborada por mulheres, na prática, Sara espera ver no setor cevejeiro, com a maior presença e participação nas decisões para consolidação do segmento. “É preciso que profissionais negros estejam no processo de construção desse mercado, não em postos de subalternidade, mas, em cargos de decisões. É preciso escurecer os espaços.”
Sara destaca, ainda, que o pensamento de Lélia Gonzalez sempre buscou a valorização e, principalmente, o protagonismo das vozes negras, em um contraponto aos efeitos duradouros da opressão colonial.
Lélia reivindica a humanidade de pessoas negras e povos originários. Diferente dos teóricos brancos que exotizam esses corpos, ela reivindica suas vozes, reivindica seus lugares enquanto elaboradores do conhecimento, enquanto produtores de riquezas das sociedades, e, portanto, deveriam ser parte
Sara Araujo, sommelière de cervejas
Ela lembra, ainda, a importância de Lélia para a criação de espaços pelos direitos das mulheres negras, incluindo a questão da raça na luta feminista, destacando como a diferença de classes afetava as demandas. “Lélia, uma grande militante do feminismo negro, mesmo que o conceito não lhe abrigasse, lutou em prol da emancipação das mulheres negras, as quais eram subalternizadas pela estrutura patriarcal e racista. Ela abriu caminho, o que reverbera de forma inconteste na construção do pensamento das mulheres negras que vemos hoje levantando pautas e bandeiras, reivindicando efetivação de direitos às mulheres negras, LGBTQI+ e pertencentes aos povos originários”, argumenta.
Na visão de Sara, inclusive, o trabalho de Lélia Gonzalez trazido para o contexto do setor cervejeiro aponta para outro problema: o eurocentrismo na narrativa da história da bebida em detrimento de outras sociedades, como a egípcia, fundamental para o seu surgimento, mas muitas vezes esquecida pelas instituições de ensino no segmento.
“O meio cervejeiro, não sendo estanque do tecido social, deverá acolher esses corpos. Por exemplo: as escolas que formam profissionais para o mercado cervejeiro, sempre que contam a história da cerveja, excluem o continente africano. Sabemos que Egito/Kemet foi um dos maiores produtores de cervejas, quem mais propagou a cultura cervejeira, a cerveja fazia parte da economia daquele país, servindo inclusive como moeda, mas, me diz, qual escola que trabalha essa questão?”, questiona Sara.
A cerveja da Lélia
As criadoras da cerveja para a Nacional contam que a escolha dos ingredientes está relacionada aos conceitos que Lélia Gonzalez trouxe em sua trajetória. Assim, a ideia de amefricanidade, citada por Sara, estaria relacionada com a definição da seriguela para a receita.
“Relacionando com os ingredientes da cerveja Lélia, temos a seriguela, que apesar de ter se popularizado como uma fruta nordestina, principalmente no Sudeste, sua origem, na verdade, é da região México-América Central. Outro fator importante é a presença do manjericão, que dá uma refrescância necessária e adaptada ao clima tropical”, dizem Eneide Gama, Melissa Miranda e Carol Chieranda.
Além disso, elas apontam que a escolha do estilo passou pela valorização do local. “Lélia, filósofa e ativista, veio para inverter as lógicas, retirar as amarras coloniais e reconhecer as riquezas do nosso território e nossa gente. A cerveja Lélia vem para homenageá-la com essa mesma proposta de inversão, de que a refrescância e leveza de uma cerveja pode ser justamente para satisfazer quem está nesse território com suas características e gostos locais”, completam as cervejeiras.
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