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Balcão da Nadhine: Primeiras impressões sobre o cenário da cerveja artesanal na Hungria


A cerveja artesanal como conhecemos vem se tornando cada vez mais popular, não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Essa mudança no perfil de consumo também atinge o Velho Mundo. Com esse artigo pretendo falar sobre o cenário da cerveja artesanal na Hungria, que teve seu boom praticamente no mesmo período que o Brasil, aproximadamente 8 anos atrás. Farei esse panorama da perspectiva de Budapeste, sua capital, onde está florescendo uma importante cena com muitas cervejarias e taprooms disponíveis para explorar a cultura cervejeira nesse mercado crescente, que representa hoje de 5 a 6% do mercado cervejeiro total do país.

A Hungria é um país com uma história tradicional de vinho e mel, cortado pelo Rio Danúbio, sendo famoso por suas termas. Tem território equivalente ao estado de Santa Catarina e população equivalente à de Pernambuco. O país hoje é o lar de cerca de 120 cervejarias artesanais. Estas cervejarias locais produzem uma grande variedade de cervejas únicas, usando ingredientes locais e receitas seguindo as tendências modernas mundiais.

Havia uma cena cervejeira húngara carregada das cultura alemã e checa e existia uma variedade interessante até a Segunda Guerra Mundial. Mas durante o regime soviético, a Hungria se tornou um dos países mais isolados do mundo, a maioria das pessoas era estritamente proibida de beber qualquer coisa além de álcool de origem estatal. Após o término dessa época, em 1989, a restrição acabou. Isto abriu as portas para o retorno de uma cultura cervejeira.

Na Hungria, algumas das movimentações políticas são feitas em conjunto com as cervejarias pequenas (as que produzem até 200 mil hectolitros de cerveja por ano). Alguns dos meus entrevistados contaram que existem dois grandes marcos na história da cerveja artesanal na Hungria. O primeiro período de desenvolvimento de cervejarias de pequena escala ocorreu no início dos anos 1990. A maioria das empresas da época já fechou, mas há algumas entre as primeiras que não apenas operam, mas são referência até os dias atuais, como a Szent András Sörfózde, com mais de 30 anos.

O segundo marco ocorreu em 2010, com alterações de lei para redução do imposto para as pequenas cervejarias, além de uma legislação específica para produção de cerveja caseira. O mercado interno foi atingido por um choque de oferta, o comércio de matéria-prima também se voltou para a qualidade e isso criou uma revolução na cerveja nacional húngara.

A recente lei Kósa Lajos, de 2020, determina que pelo menos 20% da venda de cerveja dos restaurantes, pubs, lojas especializadas e prateleiras de supermercados dedicados à venda de cerveja, seja destinada à cerveja dos pequenos produtores. É uma outra ação ativa do governo que impacta profundamente o mercado de cerveja artesanal húngaro e com a qual podemos aprender bastante em terras brasileiras.

Como amante de cerveja artesanal, eu estava animada em visitar algumas das cervejarias locais e experimentar algumas de suas melhores cervejas. Decidi visitar cervejarias com diferentes perfis e ver o que elas tinham a oferecer, aproveitando para conversar com especialistas do mercado e, assim, também comparar com o mercado brasileiro de cervejas artesanais.

Para os brasileiros, a participação de mercado de mais de 5% pode parecer um sonho distante, mas o caminho do mercado de craft beer na Hungria também não é fácil. Com uma produção anual de 5.378 milhões de hectolitros, a cerveja húngara mais popular também é tradicionalmente a Light Lager. Com presença das marcas gigantes Borsodi, Dreher, Soproni (do Grupo Heineken), Carlsberg e Pécsi. Apesar da distância entre Brasil e Hungria, os desafios de mudança da cultura cervejeira são parecidos.

A primeira cervejaria visitada foi, na verdade, um brewpub onde conversei com o proprietário Greg Kieckhefer. A Gravity Brewing tem duas produções, uma de 600 litros e uma de 120L, para testes e receitas mais ousadas. Foi fundada em 2018, mas com os problemas da pandemia, só passou a operar nos moldes atuais há um ano e meio.

Apesar de ter sido construída numa antiga estrutura de bunker, o visual e a atmosfera são leves. Possui uma equipe enxuta, mas mesmo assim diversa. Lá, pude degustar cervejas, que apesar da complexidade, se apresentaram extremamente bem executadas e fáceis de beber.

A segunda visita foi à cervejaria First Craft Beer. Fundada em 2017, tem uma estrutura moderna e bastante automatizada, com panelas de 2 mil litros que produzem famosas cervejas de linha. Mas também sempre lança algumas sazonais. A produção anual é de aproximadamente 15.000hl. Conversei com Ádám Sipos, gerente de marca da cervejaria. Com um nível de profissionalismo e atenção aos detalhes surpreendente, a marca tem um foco muito grande no controle de qualidade. Para eles, é imprescindível entregar o mesmo produto para o consumidor final. Com cervejas populares para quem está introduzindo à cultura cervejeira craft como as com adição de mirtilo e de cereja, a empresa considera que essa educação cervejeira vai sendo construída aos poucos.

Visitei também a Mad Scientist, fundada em 2016, que se localiza no complexo de Kőbánya, em Budapeste, um lugar incrível, que foi construído nos séculos XIX e XX. Como o centro da indústria cervejeira nacional, o espaço já foi o lar de várias fábricas famosas (Dreher, Haggenmacher, Ézvény, Polgári, Király etc.). E hoje a Király Beer Brewery, um antigo complexo de edifícios históricos, é o lar das cervejarias Mad Scientist, Horizont e Hoptop. Elas habitam, hoje, parte dos prédios centenários que guardam nas paredes a história do mosto fermentado húngaro. Conversei com Márton Sefcsik, gerente de desenvolvimento de negócios. Márton e o lugar inteiro tinham a energia quase palpável de que eles transbordam o amor pela cerveja artesanal. Foi uma experiência incrível.

A seguir, vou dar uma pincelada sobre as conversas que tive com cada um deles, apresentando três pontos de vista diferentes do mesmo setor, tendo como base perguntas pré-definidas por mim para nortear a pauta. Segue o resumo dessas conversas:

Assim como no Brasil, a Hungria tem uma tradição de consumo e produção de cervejas Light Lager. Como você descreveria o crescimento do mercado de cervejas artesanais no seu país?
Todos lembraram dos marcos na história da cerveja húngara e de como a cultura de vinho e cerveja Lager é muito forte, mas houve uma ruptura com o crescimento do movimento craft e as mudanças de lei. Ádám falou que essa é uma transformação lenta, o consumidor ainda não está preparado para uma mudança muito brusca. Além da limitação financeira, não existe a cultura de gastar mais para beber uma cerveja melhor para a maioria dos húngaros. Greg, da Gravity, por ser dono de um brewpub, consegue ser um pouco mais ousado, possui um público que já entende um pouco mais de cerveja, e como seu atendimento é com contato direto com o cliente, prefere pressionar um pouco mais os iniciantes, para terem experiências que normalmente não teriam. 

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Temos uma tendência forte de seguir o que é moda nas cervejarias americanas. O que seria de fato uma produção pensada para o mercado local?
Todos acreditam que não existe ainda. Esse mercado está sendo formado, por isso não existe uma clara linha para uma produção pensada ao mercado local. Para Greg, o uso de alguns ingredientes regionais pode criar o vínculo do consumidor com a cerveja como algo local, mas não necessariamente é o desejo do mercado e sim uma ação ativa das cervejarias de criar esse vínculo.

O que já é feito e o que poderia melhorar para aumentar a cultura cervejeira entre os húngaros?
Os eventos são de extrema importância para a propagação da cultura da cerveja artesanal na Hungria. O primeiro grande evento foi um marco para todos os cervejeiros: o Főzdefeszt (“Fest Brew”) surpreendeu até os organizadores, o festival foi um sucesso. Dizem que 10 mil pessoas compareceram ao longo dos três dias do festival, e as cervejarias acabaram com os estoques previstos para todo o festival na primeira noite. Isso provou que existia uma demanda no país, o fato abriu as portas para novas cervejarias e novos eventos.

Seria possível criar um vínculo de regionalidade com algum tipo de cerveja como o vinho Tokaj1? Como seria essa cerveja?
Márton conta que a Mad Scientist produz bastante braggot, tipo de hidromel feito com mel e malte de cevada, o que poderia ter uma identidade local por conta da cultura do mel no país, mas isso não necessariamente é uma demanda do mercado local, boa parte da produção da cervejaria vai para outros países na Europa.

Meggy sör, a “cerveja de cereja”, é um produto muito popular aqui, por isso se torna uma oportunidade de criar novos entrantes no mercado de cerveja artesanal. Ádám conta que as cervejas com cereja e blueberry da First servem como porta de entrada para muitos consumidores.

Como foi o impacto da pandemia nas cervejarias craft húngaras e o que mudou?
A pandemia teve um grande impacto nas cervejarias artesanais húngara. Assim como no Brasil, várias delas dependiam dos bares e eventos para escoar seus produtos. E tiveram que aprender como fazer a venda direta para os clientes, além de lidar com mais profissionalismo em relação ao marketing, logística etc. Para Greg, a pandemia significou o adiamento da abertura da casa. Então, foi um grande impacto em relação ao tempo para retorno do investimento.

Márton me contou que a Mad Scientist possui uma filosofia muito forte em relação ao impacto social da cervejaria, então, para eles, foi extremamente importante não demitir ninguém nessa fase difícil. Eles estavam um pouco mais preparados que as outras cervejarias, pois desde o começo eles possuem uma forte estrutura para as vendas online. A cervejaria tem um foco forte no e-commerce para toda a Europa, então mantiveram os lançamentos inovadores mesmo durante a pandemia.

Existe uma tendência nas Américas de cervejas com menos álcool. Você acha que isso é realidade também aqui na Europa?
Todos os entrevistados, além de todos os húngaros com quem conversei, não acreditam que essa tendência possa crescer de maneira relevante na Hungria em alguns anos. A cultura do consumo de álcool é muito forte nessa região e isso não deve mudar. Além disso, dentro do nicho da cerveja artesanal, as cervejas com mais álcool são vistas como cervejas de maior valor, de maneira geral. Como ainda está se criando essa cultura de beber produtos de melhor qualidade, levará um tempo para o próximo passo do “beba menos, beba melhor”. Mas todos os entrevistados garantem que têm isso em mente e que muito brevemente pretendem disponibilizar produtos de menor teor alcoólico para o público em geral.

O mercado cervejeiro húngaro também é majoritariamente formado por homens? O que você acha que pode ser feito para trazer mais diversidade?
Para os donos das cervejarias, a diversidade vem sendo construída aos poucos, à medida que algumas mulheres têm se interessado e procurado formação na área. Mas majoritariamente as cervejarias foram formadas por amigos que faziam cerveja em casa, então, a maioria é, sim, masculina. A Hungria não ajuda muito nessa questão, existe uma lei que impede que mulheres realizem trabalhos nos quais seja necessário carregar uma determinada quantidade de peso, o que inviabiliza o carregamento de um Keg cheio, por exemplo, impedindo mulheres de realizarem esse tipo de atividade, muito corriqueira dentro de qualquer cervejaria.

Na Gravity, Greg conta que apesar de ter uma equipe muito pequena, no brewpub, ele acha que a equipe é bastante diversa. São duas mulheres numa equipe de cinco pessoas. Ele costuma fazer análise sensorial com todos da equipe para decisões de futuras receitas e avaliação do próprio produto. Ele reforça que ter diferentes perspectivas e diferentes histórias de vida enriquece muito essas reuniões. E isso se reflete no produto final.


O cenário cervejeiro dos grandes conglomerados é marcado por uma competição ferrenha, como você vê essa competição no mercado craft húngaro?
Assim como no Brasil, algumas das grandes cervejarias criaram algumas receitas que “conversam” com os termos do mundo craft. Ádám vê isso de forma positiva, pois essas cervejas servem para introduzir o cliente no mercado craft. Muitos vão se familiarizando com termos como IPA e Session, o que facilita na hora de eles escolherem na prateleira do supermercado uma cerveja especial para tomar em casa. Mas os mercados são completamente diferentes. E apesar de as cervejarias artesanais estarem disputando dentro de uma fatia pequena de mercado de 5-6%, ainda consideram que o convívio é amistoso.

Existem algumas parcerias locais, vários eventos conjuntos, Além disso, diversas cervejarias possuem taprooms próprios e recebem algumas cervejarias convidadas, fazem receitas colaborativas, etc. Para Mártom “somos como pequenos peixes nadando juntos”.

Mergulhar nesse cenário tão diferente, mas com tantas semelhanças ao mercado de cerveja artesanal do Brasil está sendo uma experiência encantadora. No próximo artigo, falarei um pouco sobre o impacto da guerra da Ucrânia no mercado de cerveja artesanal húngaro e como o país foi fundamental na história da cerveja Pilsen, produzida em grande escala.


1Tokaj é o nome dos vinhos da região vinícola Tokaj, na Hungria, conhecida por seus vinhos doces feitos de uvas afetadas pela terroir local. É um estilo de vinho nobre que tem uma longa história na região, tão importante que é até mencionado no hino nacional da Hungria. E possui regulamentação de controle de qualidade húngaro.


Nadhine França foi a primeira mulher a ocupar a presidência executiva da Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva), também sendo responsável pela criação e coordenação do Núcleo de Diversidade. É analista de sistemas, cervejeira, beer sommelière, Cicerone Certified Beer Server, juíza internacional de cerveja, organizadora de eventos, concursos e congressos cervejeiros. Hoje mora em Budapeste.

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