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Balcão Xirê Cervejeiro: A integração do hip-hop com a cerveja

Olá, seguidores/as e leitores/as do Guia da Cerveja! Estou de volta ao Balcão Xirê Cervejeiro e, desta vez, quem pautará nossa conversa é o hip-hop, a cerveja e a construção de um mercado cervejeiro que seja, de fato, diverso, plural e inclusivo.

Esse artigo deveria ter chegado até vocês em agosto, mês em que o hip-hop completou meio século de existência. No entanto, por questões técnicas, está chegando agora!

O que me motivou a escrever sobre esse tema foi uma matéria que li recentemente, em que se falava de uma cervejaria brasileira que estava criando uma cerveja para ser vendida em um festival de rock.

Pensei: “mais uma vez o rock?”. A cerveja está presente em todo e qualquer espaço musical. Se tem uma roda de samba, a cerveja está lá, um festival de funk, a cerveja está lá, um festival de rap, a cerveja está lá, um evento de hip-hop, olha a cerveja outra vez. Mas é sempre o rock que acaba levando a melhor quando o assunto é homenagem ou investimento da indústria cervejeira.

A cerveja é uma bebida que possui dezenas de estilos e só está autorizada a dialogar apenas com um segmento musical?

Pontuo desde já que não sou contra o rock, afinal, esse gênero musical, assim como rap, funk, samba e o **hip-hop, faz parte da cultura dos negros.

O rock ‘n’ roll foi criado por uma mulher negra. Se você não ouviu falar em Sister Rosseta Tharpe, sinto informar que não conhece a história do rock.

Nascida em 1915, em Cotton Plant, Arkansas, EUA, ela começou a usar a guitarra elétrica na década de 1930. E com seus acordes e danças eletrizantes, incendiou o mundo da música, influenciando uma geração que seguiu seus passos. Se eu fosse você, daria uma pausa nesta leitura e iria fazer uma busca no oráculo moderno: há vídeos belíssimos mostrando o virtuosismo de e seus acordes.

Outro grande artista, que influenciou nomes como Elvis Presley e Rolling Stones, foi Chuck Berry. Elvis imitava Berry nas danças e cantava “Maybellene”, canção de Chuck.

Já os Stones eram tão apaixonados por Chuck que iam aos shows do astro e pediam para dar uma palinha. No documentário “Keith Richards: Under the Influencer” há duas cenas que são uma obra de arte. Na primeira, Mick Jagger, olhando apaixonadamente para Berry, recebe autorização dele para cantar. É a cena mais linda de se ver. Outro momento genial é quando Keith tenta tocar a guitarra de Chuck e leva uma bronca dele e super respeita aquela reprimenda. O documentário é de 2015 e está hospedado no Netflix.

Você deve estar se perguntando: “Sara, esse texto é sobre hip-hop e cerveja ou sobre rock?” É sobre hip-hop e cerveja.

Essa introdução longa é para dizer que não estou contra o gênero rock, até porque ele é negro. No entanto, como a “maioria” da cultura negra, o rock foi tomado e se tornou, não na essência, mas na aparência, ou seja, esteticamente, branco. Por isso, ele é aceito nos espaços elitizados.

Nesse sentido, é comum ouvirmos o gênero musical rock em espaços como o da cerveja artesanal e não ouvirmos samba, funk ou rap, por exemplo, porque esses gêneros ainda estão quase que exclusivamente implicados às pessoas negras. São pessoas com melanina acentuada racializadas que consomem essa cultura. Talvez isso responda ao fato de não vermos cervejarias ou marcas cervejeiras se aproximarem desse público, não abrirem um diálogo, em que pese sejam consumidores em abundância.

Essa é uma tendência de um mercado fechado à diversidade e que não se quer integrativo. Por mais que algumas pessoas do meio digam o contrário, suas ações diárias mostram o oposto.

Na contramão do mercado brasileiro que possui mais de 60% de pessoas negras compondo a sociedade, o mercado estadunidense, com pouco mais de 13% de população negra, vem dando um giro de 180 graus de uma década para cá. Diferente dos brasileiros, os estadunidenses entenderam que não dá para se falar em diversidade, construção de marca e de mercado sem a presença do afro-americano, principalmente como donos de cervejarias, ocupando cargos de lideranças, criando com e para as pessoas negras, vide o movimento liderado pelo sommelier, mestre-cervejeiro e pesquisador Garrett Oliver à frente da The Michael James Jackson Foundation for Brewing & Destiling, que tem como objetivo inserir pessoas racializadas no mercado cervejeiro e de outras bebidas em cargos de liderança.

E de que forma o hip-hop entra na nossa conversa? Pois bem, cervejarias têm estreitado laços com o hip-hop como a Brooklyn Brewery, nascida em Nova York, próxima ao Harlem, lugar onde pulsa a cultura negra e berço de muitos artistas, como o excelso Notorious B.I.G., homenageado por ela no aniversário de 50 anos do surgimento* da cultura hip-hop. Contudo, se engana quem pensa que essa aproximação da cerveja artesanal com a cultura hip-hop se deu em razão do aniversário desse movimento cultural.

A cena craft beer estadunidense vem ganhando corpo e materialidade entre os afro-americanos e é junto ao hip-hop, movimento cultural intrínseco à cultura negra, que a cerveja está construindo um espaço de alteridade dentro da comunidade, feito por mãos negras. A dupla de hip-hop Run The Jewels, com álbuns aclamados pela crítica ácida e contundente, desde 2017 vem fazendo colaborações com cervejarias artesanais. Interboro, Pipeworks, J. Wakefield, Mumford e Creature Comforts trabalharam com o grupo, produzindo Double IPAs com infusão de CBD e Porters envelhecidos em barris de Bourbon com nomes de títulos de músicas.

A disseminação da cultura cerveja dentro da cultura hip-hop ocorre através de pessoas negras que amam cerveja e resgatam a ancestralidade da bebida.

Essa ideia de rappers e cervejeiros trabalhando juntos para atrair o consumidor diário de cerveja é incorporada pela série Panther Like A Panther, da Run The Jewels. Pipeworks, em Chicago, J. Wakefield, em Miami, e Interboro, no Brooklyn, lançaram Stouts e Porters no ano passado.

“Queríamos fazer uma cerveja que pensássemos que seria acessível para os não iniciados, mas também interessante o suficiente para que os geeks de cerveja fossem levados a experimentá-la”, diz Jesse Ferguson, uma das pessoas à frente do movimento cervejeiro.

A versão de Panther Like A Panther, da Pipeworks, tomou forma como uma carga de 7,5% de graduação alcoólica. Kate Brankin, da cervejaria, diz que o objetivo do Run The Jewels era criar “uma cerveja que você realmente pudesse beber”. Então, a Pipeworks tentou manter o ABV baixo enquanto buscava “algo torrado, mas mais seco e nada enjoativo”, diz. Brankin acrescenta: “30% de cerveja envelhecida em barris misturada com Porter fresco foi o ponto ideal para captar as notas de Bourbon, carvalho e baunilha dos barris e ainda obter o caráter fresco e limpo do malte da cerveja base” (https://www.craftbeer.com/craft-beer-muses/hip-hop-craft-beers).

Em 2022, a dupla formada por Killer Miker e EI-P se uniu à icônica cervejaria Brooklyn Brewery, uma das pioneiras na revolução da cerveja americana, para o lançamento de uma cerveja colaborativa, uma Double Pilsner, que levou o nome de 36” Chain, sendo uma edição limitada que foi servida durante a temporada de seis shows do grupo que ocorreu no MSG em agosto daquele ano.

E quem se dirigiu até a dupla para fazer a proposta da cerveja? Ele mesmo, Garrett Oliver, o mago da cerveja artesanal. Em release disponível na Business Wire, de onde extraio essa informação, Garrett explicou: “Quando me encontrei com a banda, brinquei que queria fazer uma ‘Pilsner tática’ – uma cerveja que ‘tem gosto de cerveja’, mas tem um toque refrescante e frutado que vem do uso do fonio. E é um pouco forte porque nada que a RTJ faz é leve!”


Outro ponto muito interessante e no qual eu acredito enquanto fomentadora de ideias é de que ao irmos à determinada comunidade ou grupo e levarmos algo, é preciso deixar também. A banca do mercado tem dois lados, como nos ensina Exu. A epistemologia dos orixás é sabedoria, está implicada na cosmogonia da diáspora africana e um dos pontos da entrevista da dupla Run The Jewels vai nessa direção.

“Mantendo o compromisso da Run The Jewels de devolver dinheiro às comunidades onde suas cervejas são feitas, uma parte dos lucros da venda da 36” Chain será doada ao Red Hook Art Project (RHAP). A missão da organização está ‘enraizada na convicção de que a autoexpressão criativa é uma experiência transformadora que enriquece indivíduos e comunidades’ e, como tal, trabalha para proporcionar um espaço onde os jovens se sintam seguros e apoiados à medida que desenvolvem as suas vozes através de projetos artísticos e atividades.”

Como podem observar, não é só sobre vender cerveja e obter o lucro pelo lucro. Cerveja artesanal é compromisso, é respeito ao território onde se insere, é respeito pelo consumidor e mirando uma diversidade e agindo com responsabilidade.

Concomitante a isso, há um movimento forte entre os afro-americanos de contar a verdadeira história da origem da cerveja. Aqui no Brasil, existe uma resistência das pessoas que propagam a história da cerveja em nomear a sua origem. São raras as pessoas que tributam ao continente africano o nascedouro da cerveja, e até a forma como ela apareceu é atribuída ao acaso e não às mãos e intelectualidade negras, quando se acredita no mito da narrativa única, espectro produzido pelos colonizadores imperialistas brancos (leia “O Perigo da História Única”, de Chimamanda Ngozi Adiche). Negar a história de outros povos e suas construções tem sido uma técnica de apagamento intencional e de morte desses povos.

Voltando à cultura cervejeira e ao hip-hop, aqui, no Brasil, a Cervejaria Implicantes caminhando na construção de um mercado diverso, lançou dois rótulos:

Uma Catharina Sour – California Love – inspirada em Tupac Shakur, e a Mo Caju Mo Problems, que é um Catharina Sour com caju, criada em homenagem a música Mo Money Mo Problems, do grande rapper Notorious BIG. Segundo Diego Dias, um dos sócios da cervejaria, “a ideia era mostrar que a cerveja pode ser consumida junto com outros estilos musicais”.


Recentemente, fui a um festival de cervejas artesanais, chamei amigos e amigas para prestigiar o evento. Um do grupo de amigos não conseguiu ficar no evento. A fala que ouvi foi: “queria aproveitar, mas todo festival de cerveja só tem rock? Estou cansada. Sara, sinto muito, mas não vou ficar”.

Conclusão: fui embora com eles e acabamos em um restaurante. E logo que chegamos, fomos recepcionados por uma banda que estava tocando forró. Passamos boas horas comendo, tomando cervejas e, claro, ouvindo um forrozinho. Podíamos ter ficado no festival se a programação musical fosse outra.

Isto posto, penso que o mercado das cervejas artesanais precisa se rever em vários aspectos, sobretudo, repensar com quem mesmo ele quer dialogar, se somente para uma bolha branca, heterocisnormativa, ou se irá se abrir para a diversidade como um todo. 


*”O hip-hop, para muito além da expressão inglesa, que pode ser literalmente traduzida como balançar [to hip] o quadril [hop], tem sido compreendido como um movimento social juvenil urbano enraizado no segmento populacional de baixo poder aquisitivo, a maioria negra e jovem, que historicamente ganha força nos Estados Unidos a partir do final dos anos 1970 e posteriormente se espalha pelas grandes metrópoles do mundo. O universo hip-hop é marcado pela reflexão e crítica que faz em relação às desigualdades sociais e raciais por meio da poesia, dos gestos, falas, leituras, escritas e imagens que tomam forma pela expressividade de quatro figuras artísticas, a saber: o mestre/mestra de cerimônia.”
Letramentos de Reexistência, poesia, grafite, música e dança: hip-hop – Ana Lúcia Silva Souza – Editora Parábola – 2011

**O disc-jockey Afrika Bambaataa é considerado o pioneiro e criador deste movimento social altamente influente. Em 12 de novembro de 1973, fundou a Zulu Nation, uma organização com objetivos de autoafirmação que promovia o combate através das quatro vertentes do hip-hop e que invocava “paz, união e diversão”. Esse dia é, até hoje, celebrado como sendo o do nascimento do hip-hop.


Referências:
A Origem do Hip-Hop | A Origem das Coisas – https://origemdascoisas.com/a-origem-do-hip-hop/
https://www.craftbeer.com/craft-beer-muses/hip-hop-craft-beers

https://www.businesswire.com/news/home/20220720005165/en/Run-the-Jewels-Brooklyn-Brewery%E2%80%99s-New-Craft-Beer-Collaboration-Launches
https://www.democratandchronicle.com/story/lifestyle/2020/08/06/black-owned-breweries-rarity-new-york-state/5465071002/
https://www.foodandwine.com/news/run-the-jewels-beer-collaborations-album-releases


Sara Araujo é graduada em Ciências Jurídicas pela Instituição Toledo de Ensino, em Bauru (SP). Atua na área de execução penal, sendo graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (PR), pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica pelo Instituto Pretos Novos do Rio de Janeiro, sommelière de cervejas pela ESCM/Doemens Akademie e criadora e gestora do @negracervejassommelier

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