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Balcão do Profano Graal: Uma bebida dos deuses – A cerveja na cultura nórdica

Você já deve ter escutado, ou até mesmo dito, em uma mesa de bar que “a cerveja é sagrada”, é um “néctar dos deuses”, ou coisas desse tipo. Pois saiba que para muitos povos ela era literalmente isso, uma bebida sagrada. Desde a Antiguidade, as bebidas alcoólicas se revestem de um caráter sagrado para as sociedades humanas. Para os sumérios, na Mesopotâmia, os primeiros fermentados de cereais foram ofertados pela deusa Ninkasi. Consumir cerveja simbolizava beber o corpo de Ninkasi e celebrar a vida que ela oferecia como dádiva.

Nesse texto, quero apresentar um breve compilado sobre a sacralidade da cerveja para os povos nórdicos, comumente conhecido como vikings entre os séculos V e XII. É importante ressaltar que esse termo era usado originalmente para se referir aos homens que saíam em expedições guerreiras, de comércio e pirataria. Os escandinavos não chamavam a si mesmos de vikings, pois seria um termo pejorativo. Assim como nem todo nórdico pode ser considerado um viking, pois muitos não saíram da Escandinávia para participar dessas expedições.

Como explicam os pesquisadores Johnni Langer e Luciana Campos, para os nórdicos não existia uma separação entre laico e sagrado. Todos os atos, assim como o de beber, eram mágicos, feitos em comunhão com os deuses. Beber representava uma ligação direta com as suas divindades e suas crenças. A cerveja era utilizada em rituais e como um meio de acesso aos deuses.

O caráter sagrado da bebida estava presente desde a escolha dos ingredientes até o próprio ato de beber. O grão básico cultivado durante o período medieval na Escandinávia era a cevada e além de cerveja, outras bebidas fermentadas eram consumidas, como vinhos, hidromel e cidras. Deve-se notar que, embora as palavras modernas “cerveja” e “Ale” sejam hoje quase intercambiáveis, há boas evidências de que as duas bebidas eram muito diferentes no Norte da Europa naquele período. As ale (ealu ou öl, em nórdico antigo) seriam produzidas a partir de grãos maltados. Já as björr seriam bebidas alcoólicas doces, podendo se referir inclusive às cidras.

A cerveja consumida tanto pelos vikings como pelos anglo-saxões era um fermentado rápido de cereais, levedura e ervas aromáticas. As ervas escolhidas eram usadas para garantir a longevidade, textura, cor, aroma e sabor do produto, bem como eram ervas medicinais e de uso mágico, que eram consagradas aos deuses que protegiam a bebida e quem a ingerisse. Uma das ervas mais utilizadas era a erva-de-São João ou hera-terrestre (Glechoma hederacea) de sabor amargo e rica em ácidos fenólicos, taninos antioxidantes e conservantes naturais. Algumas dessas ervas, como a artemísia (Artemísia abisinthium), a crista-de-galo (Heliotropicum indicum) e a urtiga (Urtiga dioica) têm potencial alucinógeno. Alguns poemas constantes nas Eddas (coletâneas de textos nórdicos, do século XIII) citam que a intoxicação provocada pelo álcool e ervas proporciona a ligação com os deuses. Sintomas como a perda momentânea dos sentidos, a ausência de racionalidade, a alteração de consciência, os rompantes de felicidade, conectam os homens aos deuses.

A elaboração das bebidas era uma tarefa feminina e as mulheres se responsabilizavam por todo o processo, devendo cuidar para que as despensas estivessem sempre bem abastecidas de ingredientes tanto para a elaboração da bebida de todos os dias como também para as festas. Registros históricos mostram que o consumo de cerveja era particularmente importante em vários festivais religiosos sazonais. Uma lei imposta pelo Gulating (uma das mais antigas e maiores assembleias parlamentares da Noruega, que ocorreu anualmente entre 900 e 1300 d.C.) exigia que os agricultores em grupos de pelo menos três pessoas preparassem cerveja para consumo nas festas: Samhain (1 de novembro), Yule (25 de dezembro, solstício de inverno), e Midsommar (24 de junho, solstício de verão).

Uma das figuras mais importantes da mitologia nórdica foi Aegir, um gigante Comandante do Mar e respeitado cervejeiro para os deuses de Asgard. No seu salão subaquático, chifres de beber magicamente se enchiam com a melhor cerveja e hidromel. Odin dizia que a cerveja de Aegir era a melhor de todos os Nove Mundos. O Mestre do Mar fabricava a cerveja junto com suas nove filhas no maior caldeirão já feito. Conta a mitologia que Aegir ganhou esse enorme tanque de cerveja quando os deuses uma vez se sentaram para uma refeição festiva e a mesa ficou mais ou menos vazia. Quando eles perguntaram a Aegir onde seria o banquete, ele disse que não poderia servir comida sem cerveja e que não tinha nada para preparar. Então Thor saiu em missão para roubar o enorme caldeirão do Gigante Hymir e deu a Aegir como um presente. Desde aquele momento, nunca faltou cerveja no famoso salão submarino.

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O ato de beber era tão sagrado para os nórdicos que era bem comum encontrar runas entalhadas nos chifres de beber. Sugere Thomas Karlsson que se deveria entalhar no utensílio a sequência Ansuz – Laguz – Uruz – ALU, para proteção. Recentemente, um copo cerâmico foi encontrado na Dinamarca com essas mesmas runas entalhadas no fundo. Alguns pesquisadores acreditam que se trata da palavra cerveja para os povos da Idade do Ferro (entre 200 a 500 a.C.), mas também pode significar poder, proteção, força. E, uma vez que eram entalhadas em recipientes usados para beber cerveja, poderiam representar que aqueles homens esperavam encontrar poder, força e proteção em um copo da bebida. O poema Sigrdrífumál (estrofes 7 e 19) também indica o uso de runas entalhadas nos cifres de beber. No poema a valquíria Sigfrida ensina ao rei como entalhar uma runa no chifre de beber e no dorso da mão para sua proteção “No chifre tu entalharás, e nas costas da mão, e marcarás com o prego Naud”.

Dessa forma, diferentemente da importância que atribuímos às bebidas nos dias atuais, como entretenimento e produto comercial, para os nórdicos e outros povos na Antiguidade e no Medievo, as bebidas tinham uma conexão profunda com o sagrado. Para eles, tanto o ato de fabricar, quanto o ato de beber e se embebedar eram um ato mágico, uma forma de se conectar com o divino. Então, nas festividades que se aproximam, da próxima vez que você levar um copo à boca, ou fizer uma brassagem, lembre-se de que alguém lá em cima (ou lá embaixo) pode estar olhando por você.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BUMBAR, M. Aegir, the Norse Ruler of the Sea who brew the best beer in all the Nine Worlds. Lord of the Drinks. 2016. Disponível em: https://lordsofthedrinks.com/2016/01/12/aegir-the-norse-ruler-of-the-sea-who-brew-the-best-beer-in-all-the-nine-worlds/

CAMPOS, L. A sacralidade que vem das taças: o uso de bebidas no Mito e na Literatura Nórdica Medieval. Revista Brasileira de História das Religiões. v. 8, n. 23, p. 97-107. 2015. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/article/view/29528.

CAMPOS, L. Cinco erros sobre bebidas e alimentos da Era Viking. Blog do NEVE – Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos. 2020. Disponível em: http://neve2012.blogspot.com/2020/01/cinco-erros-sobre-bebidas-e-alimentos.html.

GAIMAN, N. Mitologia Nórdica. Rio de Janeiro: Intrínseca. 2017. 288 p.

KARLSSON, T. Uthark: o lado noturno das runas. São Paulo: Penumbra. 2018. 208p.

LANGER, J. Nova inscrição rúnica é descoberta na Dinamarca. Blog do NEVE – Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos. 2019. Disponível em: http://neve2012.blogspot.com/2019/03/nova-inscricao-runica-e-descoberta-na.html

LANGER, J.; CAMPOS, L. Brindando aos Deuses: Representações de Bebidas na Era Viking, no Cinema e nos Quadrinhos. Revista De História Comparada. Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 141-164, 2012. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/RevistaHistoriaComparada/article/view/62.

McCOY, D. Viking Food and Drink. Norse Mythology for Smart People. 2019. Disponível em: https://norse-mythology.org/viking-food-drink/


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História

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