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Balcão do Profano Graal: Uma brevíssima história do lúpulo

A História é uma ciência humana. Com certeza você já ouviu essa frase. O que significa dizer que ela se ocupa de fenômenos produzidos pelos homens ao longo do tempo. Mas também é possível escrever uma história onde os homens não são os protagonistas. A história desse mês é a história de uma planta. Não uma planta qualquer, mas a planta preferida dos cervejeiros: a história do lúpulo.

O lúpulo (Humulus lupulus L., 1753) pertence à famiglia Cannabaceae. Sim, ela é uma prima distante da cannabis sativa. É uma liana (grupo de plantas que germina no solo durante toda a sua vida e necessita de um suporte para manter-se eretas, também conhecidas como trepadeiras), dioica (que apresenta flores masculinas e femininas), perene, herbácea, nativa da Europa, Ásia Ocidental e América do Norte.

Cresce no início da primavera e definha restando somente o rizoma (caule subterrâneo) no inverno. Floresce no verão, frutifica no outono e as flores são polinizadas pelo vento. Ela cresce espontaneamente nas margens dos cursos d’água. As condições mais favoráveis para o seu cultivo são encontradas entre os paralelos 35 e 55 de latitude norte ou sul. O clima não deve ser muito quente, nem excessivamente frio ou úmido. Os invernos devem ser bem longos e os verões, amenos e chuvosos.

O seu uso mais conhecido é justamente como ingrediente da cerveja. Dando a essa o sabor amargo, aromas variados e funcionando como um excelente conservante natural, sendo considerado, por isso, o “tempero” da cerveja. Há alguma controvérsia com relação às datas, mas as fontes indicam que o seu uso na cerveja já era conhecido entre os séculos VIII e IX.

Segundo Martyn Cornell, no artigo A Short History of Hops, publicado no seu site Zythophile, o primeiro documento a fazer menção ao uso do lúpulo na cerveja é uma série de estatutos sobre a administração de uma abadia escritos pelo abade Adalhard do mosteiro beneditino de Corbie, no vale do Somme perto de Amiens, norte da França, em 822. 

Cornell também afirma que é “surpreendentemente obscuro” quando exatamente o lúpulo passou a ser cultivado para ser usado na cerveja, em vez de ser apenas colhido nas florestas. Segundo o Fórum Cervejas do Mundo, o primeiro campo de cultivo de lúpulo dataria de 736, na Alemanha. Em 768, Pepino, o Breve (Rei dos Francos entre 751 e 768), concedeu plantações de lúpulo à abadia beneditina de Saint-Denis, em Paris. Patrick e Valéria Sarnighausen e Alexandre Dal Pal, por sua vez, afirmam que as primeiras evidências do seu cultivo são datadas entre 859 e 875, na Abadia de Freisingen, na Baviera.

Datação mais próxima a feita pelo próprio Cornell, que afirma que os jardins de lúpulo aparecem em registros alemães da segunda metade do século IX em torno de Hallertau, também na Baviera. Que é, ainda hoje, a maior área de cultivo de lúpulo no mundo. Mas afirma também que a melhor evidência do cultivo comercial do lúpulo seria do Norte da Alemanha e não antes dos anos 1100 ou 1200.

A princípio, o lúpulo era utilizado como parte do gruit, uma mistura de ervas que era usada para aumentar o tempo de conservação da cerveja e para torná-la mais aromática. Compunham essa mistura ervas como a murta de Brabante, alecrim selvagem, folhas de louro, aquiléia mil-folhas e resinas de coníferas. Inclusive, ervas com conhecidos princípios psicoativos como o meimendro. A esse respeito, no canal do Profano Graal no Youtube há um vídeo sobre o uso de ervas alucinógenas na cerveja.

Três acontecimentos colaboraram para alavancar a “carreira solo” do lúpulo como principal ingrediente da cerveja. O primeiro foi a existência de impostos sobre o gruit. Datam do século IX os primeiros decretos que concediam o seu monopólio aos mosteiros (os gruitrecht). Segundo Giovani Messineo, no site italiano Giornale della Birra, mosteiros, bispos e outros detentores de direitos sobre o gruit também foram autorizados a conceder o usufruto da mistura para outros produtores, mediante taxa.

Dessa forma, a compra e venda de direitos sobre o gruit se transformaram em uma espécie de imposto indireto sobre a cerveja, gerando uma receita significativa para a Igreja Católica. Por outro lado, não havia impostos a pagar para o papa em relação ao lúpulo, nem mesmo em regiões controladas por católicos.

Os outros dois são mais conhecidos do público cervejeiro. Um foi a publicação do tratado de medicina naturalista da freira beneditina Hildegard Von Bingen (1098-1179), mestra do mosteiro de Rupertsberg na cidade de Bingen am Rhein, na Alemanha, intitulado Livro das sutilezas das várias naturezas da criação (ou Livro das propriedades das várias criaturas da natureza, dependendo da tradução), escrito entre 1151 e 1158. E o outro, o mais conhecido de todos, foi a promulgação da Lei da Pureza da Cerveja – ou Reinheitsgebot – pelo Duque Guilherme IV (1493-1550), em 1516. Mas voltaremos a esses três temas em outra ocasião.

A mudança do gruit para o lúpulo, porém, levaria séculos porque, por um lado, havia uma tendência a querer preservar costumes antigos e, por outro, havia o sabor amargo do lúpulo. Uma cerveja aromatizada com o gruit era muito mais doce do que uma cerveja lupulada. E muita água passou por debaixo das pontes da história até que os cervejeiros aprendessem a fabricar, e os consumidores aprendessem a apreciar uma Hazy Double IPA como a que você tem no seu copo no mesmo momento em que lê esse texto.

Referências bibliográficas:
CORNELL, Martyn. A short history of hops. Zytophile. 2009. (http://zythophile.co.uk/2009/11/20/a-short-history-of-hops/). Acesso em 02/01/2021.

COSTA, Marcos Nunes. Mulheres Intelectuais na Idade Média: Hildegarda de Bingen – entre a medicina, a filosofia e a mística. Trans / Form / Ação. Marília, v. 35, 2012, p. 187-208.

História da cerveja – A Era Medieval. Cervejas do Mundo – Tudo sobre cerveja. (http://www.cervejasdomundo.com/EraMedieval.htm). Acesso em 02/01/2021.

MESSINEO, Giovani. La birra protagonista nella storia – capitolo 4. Giornale della Birra. (https://www.giornaledellabirra.it/storia-di-birra/la-birra-protagonista-nella-storia-capitolo-4/) Acesso em: 02/01/2021.

OLIVER, Garret (edição). História da Cerveja. in: Guia Oxford da Cerveja. São Paulo: Blucher, 2020, p. 500-505. SARNIGHAUSEN, Patrick; SARNIGHAUSEN, Valéria C. R.; DAL PAI, Alexandre.

O lúpulo e a oportunidade do agronegócio no Brasil. Anais da 6ª Jornada Científica e Tecnológica da FATEC de Botucatu. São Paulo. 2017. (http://www.jornacitec.fatecbt.edu.br/index.php/VIJTC/VIJTC/paper/viewFile/1118/1547) Acesso em 02/01/2021.


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História

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