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Balcão Xirê Cervejeiro: 3 depoimentos sobre consumo e exclusão no setor

Olá, seguidores/as e leitores/as do Guia da Cerveja, estou de volta ao balcão Xirê Cervejeiro e, desta vez, o consumir a cerveja é que conduzirá nossa conversa.

Nos últimos meses, o mercado cervejeiro estava em movimentação acerca das inovações tecnológicas voltadas aos insumos, ao fazer cervejas de qualidade – e isso é muito bom e positivo.

Mas, cada vez mais, ouvindo as pessoas, seja nas redes sociais ou em espaços dedicados a beber esse líquido que é paixão de muitos e muitas, a fala recorrente era de como o atendimento as aproximam ou afastam do consumo da cerveja.

Para quem me acompanha, sabe que sempre racializo todo e qualquer debate, e é necessário fazê-lo, sobretudo, em um país como o nosso, de maioria negra.

Optei nessa coluna em trazer sempre o olhar de pessoas racializadas para que elas mesmas pudessem utilizar a sua voz e dizer como é ser consumidor/a de cerveja, como elas se sentem nos espaços que frequentam. E fica aqui, desde já, para o mercado, atenção ao que eles e elas dizem.

Afinal, quando uma cervejaria contrata um/a cervejeiro/a, compra os melhores insumos, as melhores máquinas, desenvolve as melhores receitas, investe em marketing, logística, relações e estratégia, advogados/as, relações públicas, não é somente para colocar um medalha na estante do estabelecimento; é, sobretudo, para que a escolha cuidadosa do lúpulo, a correção bem feita na água, a seleção do melhor malte, da levedura ou da fruta a ser usada, que no decorrer do processo se transformará em uma deliciosa cerveja, é para que ela chegue às mãos das pessoas e que não vire somente uma fração monetária, a qual dará retorno para pagar fornecedores, colaboradores/as, o fisco e garantir algum lucro, sim; cerveja é arte, mas também é comércio e, para que as pessoas consumam, elas precisam sentir-se bem na seleção do produto, e isso, principalmente no campo das artesanais, tem feito com que consumidores/as sejam cada vez mais conscientes na escolha e de onde gastar seu dinheiro.

E, não só, ainda tem o fator de excludência que permeia o universo das artesanais. Somos um país continental e com múltiplas diversidades, e a cerveja também é múltipla e diversa, no entanto, esse diálogo que deveria ser natural não acontece, sobretudo porque se construiu no imaginário de quem faz ou, também, dos/as poucos/as que estão inseridos nesse nicho, que a cerveja artesanal é sinônimo de status e inacessibilidade. E o que deveria ser para todos e todas, fica restrito a uma bolha, a um espaço que só conversa entre si. Como fazer para sair desse espectro de seletividade e chegar ao copo das diversidades e multiplicidades de pessoas?

Não tenho a receita mágica, não existe um manual, mas há apontamentos trazidos pelos/as próprios consumidores/as, e penso que o melhor caminho é ouvi-los/as.

Nossa sociedade foi formada por séculos de colonização e ainda se carrega muito dessa política verticalizada, ou seja, de cima para baixo. A maioria pensa que sabe o que o/a consumidor/a de cervejas quer, mas nunca pergunta o que de fato quer, e não só, muitas empresas acreditam que a cerveja se vende sozinha, mas esquecem o fator humano. O produto irá se comunicar com pessoas e, mesmo sabendo que o tomar cervejas é sobre relações, essa ponte deve ser construída e com muito cuidado e respeito com aquele/a que irá consumir.

Como iniciei nossa conversa, recebo muito retorno de pessoas que me acompanham, falam o quanto passaram a ter uma relação com a cerveja, de como conseguem escolher um rótulo, como harmonizam suas cervejas com comidas, que nem sabiam que isso era possível, de perceberem que seu paladar evoluiu e como a atenção de determinados profissionais foram importantes para ampliar essa janela.

Dito isso, convidei três pessoas para falar sobre sua relação com a cerveja e, como vocês sabem, trago na íntegra o que elas escrevem. Aqui é uma conversa franca e sem filtro, horizontal, então vamos lá.

Nina Novaes, 40 anos, Salvador/BA, produtora audiovisual, consumidora e apreciadora de cerveja
“A cerveja artesanal passou a fazer parte de minha vida de uma forma natural e tranquila no ano pandêmico de 2020, para ser mais específica. Ano que se faz importante salientar a mudança comportamental dos brasileiros, seja pela necessidade de ficar em casa, seja pela falta do convívio social principalmente na vida de bares e botecos. Então, após me curar da Covid-19, perdi o paladar e a vontade de consumir as cervejas de prateleira vendidas em larga escala. Após conversar com uma sommelier negra, fui entendendo o universo e me sentindo segura, eu posso consumir, eu gosto, eu posso escolher sem ficar constrangida. Mas como obter conhecimento nos espaços que frequentava se a receptividade dos profissionais quando se trata de mulher e negra não era agradável? Sempre em tons irônicos ou de demonstrar um conhecimento que não me alcançava. Foi na reclusão pandêmica, estando em casa, que pude testar tons, sabores, cores, cheiros sem medo de ser julgada ou ridicularizada. Pronto, virei oficialmente consumidora de cerveja artesanal. O que mudou? Antes do fim do mundo, participava de eventos, buscava informações, mas sempre de forma tímida e insegura! Eu não relaxava e não havia prazer naqueles momentos por me preocupar com várias formas de julgamentos, como saber beber, falar da cerveja, entender, etc. Depois de me tornar uma pessoa segura, de conhecer outras pessoas pretas que consumiam e se reuniam virtualmente, aí o mundo ficou pequeno e cheio de possibilidades. Porém, é importante frisar que é um lugar de privilégio poder consumir alguns rótulos, pois a cerveja artesanal nunca foi de fácil acesso para a grande massa; ela sempre foi uma bebida elitizada e sempre houve um esforço de marketing para demarcar isso, assim como a vida toda achávamos que a origem da cerveja era alemã. Hoje consumo com prazer, com poder de escolha para o que estou sentindo no momento. Aprendi a cozinhar e a sentir experiências de sabores ao harmonizar com iguarias doces e salgadas. Outro recorte é que aqui em Salvador há dois fenômenos: quando você trabalha em botecos, ou você é o velho e tradicional garçom gente boa que só atende e sorri; ou você vai ser o sommelier ou o intendente cervejeiro, como gosto de chamar, que, ao atender o cliente branco, precisa demonstrar que entende menos e que a opinião dele ali não vale nada, ou fazer um esforço formal e técnico para provar a sua expertise no ramo. Quando esses intendentes pretos atendem outro preto, há uma linha de contato no olhar, depois um sorriso, e aquela felicidade em nos atender, em meio à tensão de ter que ficar atentos aos clientes brancos exigentes.

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É, sim, tudo é um grande caos. Caso a gente não finja indiferença para tudo isso, enlouquece. O fato é que o nome cerveja artesanal já traz consigo um distanciamento popular. Agora também sabemos que a grande massa consome cervejas de prateleira, com valores que ultrapassam as ditas artesanais pela quantidade/volume consumida de forma recreativa exagerada. Mas por que temos que julgar o que é cerveja boa e de verdade quando sabemos que a melhor cerveja é aquela que cabe em nosso bolso, e que nos dá prazer em nosso lazer e vivências? Acredito que a rotulação da cerveja, e o marketing para público A/B/C, é o que torna a bebida não popular e não acessível. Ou seja, o vinho ele só é o vinho seco, tinto, suave, rose, de X região, etc , o que no popular é vinho caro, ou vinho barato, seja ele feito em processo em escala industrial ou artesanal. Para a cerveja, assim como o café, o que é distribuído em grande escala é uma espécie de mistura industrial e que, no final, a quantidade consumida enriquece a indústria cervejeira, e essa mesma indústria alimenta uma classe especifica com um produto melhor tratado e qualificado para o consumo.”

Thiago da Silva Oliveira, professor e escritor
“Beber uma cerveja feita por profissionais negros/as, primeiramente, me faz pensar em uma empresa que tem preocupação e compromisso com a diversidade. E que além do conteúdo, detalhes como rótulo, conceito e propaganda estão alinhados com o antirracismo. Em um mercado majoritariamente branco, é necessário buscar a equidade racial no país onde prevalecem mais pessoas negras. Acredito que trazer esse debate através da cerveja, que historicamente é uma bebida relacionada a encontros e diálogos, é uma ótima oportunidade. Hoje, eu quero ver mais cervejarias comandadas por pessoas negras. Isso não é só um detalhe, é um dos pontos principais para minhas escolhas do que consumir.”

Cléo Ramos, historiadora e produtora executiva
“Quando conheci a cerveja artesanal, minha percepção sobre cerveja mudou. Eu não gostava de cerveja, quase não bebia. Hoje sou uma consumidora frequente dessa bebida que agrega, socializa. Pesquisando sobre cheguei nos (nas) cervejeiros negros, então minha visão se ampliou e pude me senti incluída de verdade nesse meio que sempre foi elitizado, branco e masculino. Tenho acompanhando os debates em torno da produção e comercialização da cerveja artesanal e tenho ficando muito contente com o que vejo. Pessoas pretas produzindo, comercializando, consumindo um produto que é nosso. Digo isso porque descobri recentemente que a cerveja é africana e essa informação nos foi negada durante muito tempo – e ainda não é popularizada entre os nossos. Mas visualizo novos horizontes para esse mercado tão promissor que é o das cervejas artesanais, vejo o povo preto se apropriando dessa delícia de bebida e aproveitando ao máximo o que ela tem de bom, levando em conta as os limites do alcoolismo. que é muito sério.”

Ao receber os apontamentos de Nina, Thiago e Cléo, observei que suas falas se conectavam no que diz respeito ao acesso, a ter profissionais qualificados para auxiliá-los/as nas escolhas. E isso aponta ao nosso ponto de partida: a cerveja é um dos produtos mais magníficos que nossos ancestrais nos deixaram, mas é importante não nos esquecermos de que essa tecnologia ancestral, para existir, precisa conectar-se às pessoas. A cerveja só se faz em completo quando às mãos das pessoas.

Aline Silva, hospitality e mentora de hospitalidade, nos apontou que: “As pessoas podem frequentar certos lugares pelo status, pela boa gastronomia e pelo serviço, mas ela volta pela hospitalidade” (SILVA, 2022, p.203).

Cerveja é conexão, é ralação entre pessoas, é ponte de afeto, é o elo social entre várias comunidades. Ela não está restrita aos espaços cheio de pessoas iguais, como se fossem um bloco monolítico; cerveja é diversidade em todos os sentidos, cerveja não é elitista, ela deve abraçar todas as pessoas de forma natural e sem esnobismos. E, se o mercado realmente estiver disposto a conectar a cerveja às pessoas, precisa se colocar na posição de escuta, ouvir o que elas têm a dizer. Temos potencial para sermos imensos, basta não querer segregar. Estamos diante de uma geração que diz em alto e bom som: “se não me vejo, não compro”, então, que possamos cada vez mais, para além das máquinas, aprender a dialogar com as pessoas. Cerveja, diversidade e paridade também são tecnologias, tecnologias que aproximam o/a consumidor/a à cerveja e cerveja é, antes de tudo, vínculo.


Sara Araujo é graduada em Ciências Jurídicas, pela Instituição Toledo de Ensino (Bauru-SP), atuando na área de execução penal. É graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (PR), pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica pelo Instituto Pretos Novos do Rio de Janeiro, sommelière de Cervejas pela ESCM/Doemens Akademie e criadora e gestora do @negracervejassommelier.

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