fbpx

Balcão do Profano Graal: Hildegard von Bingen, a cientista


Hoje, 17 de setembro, se comemora o dia de mais uma famosa santa cervejeira: a freira beneditina Hildegard von Bingen (1098-17/09/1179), muito conhecida no meio cervejeiro por ser a autora da mais antiga menção às propriedades conservantes e aromatizantes do lúpulo. Mestra do mosteiro de Rupertsberg na cidade de Bingen am Rhein, além de mística, teóloga e pregadora, Hildegard foi também poetisa e compositora, naturalista, dramaturga e médica. E neste texto eu quero chamar a atenção não para a sua atuação como religiosa, mas como cientista.

Segundo seus biógrafos, o fato de ela ter visões desde os 3 anos e sua saúde precária teriam sido os motivos principais que a destinaram à vida religiosa. Teria começado a escrever após ter uma visão na qual uma voz lhe falava: “Oh mulher frágil, cinza de cinza e corrupção de corrupção, proclama e escreve o que vês e ouves”.

Primeiro, porém, teve que superar o sentimento de que era incapaz e indigna de fazê-lo. Um sentimento certamente nascido dos preconceitos que existiam em seu tempo a respeito da moralidade e das capacidades físicas e intelectuais das mulheres. Apenas após a aprovação do papa Eugênio III (1145-1153), que encarregou uma comissão de teólogos de examinar os relatos das suas visões, é que Hildegard passou a se sentir confiante para escrever. Sua primeira publicação, intitulada Livro do Conhecimento dos Caminhos do Senhor (Liber scivias Domini – c. 1151), é de fato uma coleção de relatos sobre suas visões.

Dessa mesma época são suas primeiras composições musicais e poéticas conhecidas, assim como suas primeiras observações científicas da natureza e textos médicos. Entre 1151 e 1158, ela escreveu o seu tratado de medicina naturalista intitulado Livro das sutilezas das várias naturezas da criação ou Livro das propriedades das várias criaturas da natureza, dependendo da tradução (Liber subtilitatum diversarum naturarum creaturarum).

Sendo considerado o primeiro livro de ciências naturais escrito no Sacro Império Romano-Germânico, após a sua morte foi dividido em duas partes: Física ou Livro de medicina simples, dividido em nove livros; e Causas e Curas ou Livro da medicina composta, dividido em cinco livros.

A Física está dividida da seguinte maneira: Das Plantas (De Plantis), Dos Elementos (De elementis), Das Árvores (De Arboribus), Das Pedras (De Lapidibus), Dos Peixes (De Piscibus), Das Aves (De Avibus), Dos Animais (De Animalibus), Dos Répteis (De Reptilibus) e Dos Metais (De Metallibus). São descritas quase 300 plantas, 61 tipos de aves e animais voadores e 41 tipos de mamíferos. As descrições das plantas reduzem-se à classificação do seu “temperamento”, seguindo os princípios da medicina clássica: quentes, frias, secas ou úmidas. Mas o centro do trabalho é a apresentação dos seus usos médicos. É no primeiro livro, no capítulo 61, em que ela faz a sua famosa menção ao uso do lúpulo como um eficiente conservante natural para bebidas:

O lúpulo é quente e seco, tem umidade moderada e não é muito útil para beneficiar o homem, porque faz crescer a melancolia no homem, entristece a sua alma e oprime seus órgãos internos. Mas também, como resultado do seu amargor, ele mantém algumas putrefações fora das bebidas, às quais pode ser adicionado para que durem muito mais tempo

(CORNELL, 2009)

Atribui-se a esse livro o estatuto de ter sido a base para o estudo da Botânica durante toda a Baixa Idade Média até o século XVI. “Em Physica, Hildegarda descreve as substâncias médicas naturais disponíveis naquele tempo. Além da descrição dos elementos da natureza e de sua aplicabilidade para a prevenção e cura de doenças tanto físicas quanto mentais e espirituais, a obra parece ser um manual geral sobre a utilidade e o valor das substâncias mais comuns e abundantes na Criação, que são plantas, animais e minerais” (MARTINS, 2019, p. 163-164).

Em Causas e Curas, como sugere o próprio título, ela descreve as doenças e os remédios para curá-las. Como explica Maria Cristina Martins, Hildegard considerava o ser humano como um sistema complexo e interligado entre corpo, mente e espírito. O centro da sua exposição são os seus usos médicos. Dessa forma, sua medicina envolvia uma prática ao mesmo tempo mágica, religiosa e científica. Como explica Marcos Roberto Nunes Costa:

Publicidade

Aqui, mantendo-se em seu holismo, em que faz uma íntima relação entre corpo e alma, o homem e a natureza, o natural e o sobrenatural, Hildegarda defende que boa parte das doenças dos homens é consequência do pecado original, da perda da harmonia e da integração entre Criador e criatura, recusando-se a ver a doença como um assunto exclusivamente de ordem física, fazendo constantes conexões entre os males que afligiam a alma e aqueles de padecia o corpo

(COSTA, 2012, p. 193)

Muito menos conhecida do que o seu trabalho de botânica é a sua abordagem da sexualidade humana, feita tanto sob uma óptica teológica quanto fisiológica. Do ponto de vista teológico, comparava o desejo humano à fertilidade da terra, reconhecia que ele dava à luz uma infinidade de riquezas. Herdando parte da tendência condenatória do desejo e do prazer sensual de seu tempo, via o corpo como um instrumento da alma que devia ser disciplinado para que se formasse uma cooperação entre ambos, potencialmente confortável e prazerosa, e para que o objetivo primeiro da salvação da alma pudesse ser alcançado. Na sua abordagem fisiológica da sexualidade humana, fez uma análise detalhada do desejo e do prazer. Via o ato sexual entre homem e mulher dentro do matrimônio positivamente, comparando-o à música, e o corpo humano a um instrumento musical. Foi a primeira autora a escrever sobre sexualidade e ginecologia de um ponto de vista feminino.

No Livro das Obras Divinas, aborda as semelhanças e diferenças entre homens e mulheres. Os dois gêneros seriam complementares. Mas a mulher seria mais perfeita ou ontologicamente superior ao homem. Traçou um painel histórico dos papéis sociais tradicionalmente atribuídos às mulheres: a maternidade ou a vida religiosa. Não via nenhum deles como de todo satisfatórios, mas se manteve em uma posição ambivalente a esse respeito, com certeza pressionada pelo seu contexto.

Procurei mostrar aqui que a sua atuação vai muito além da descrição das propriedades do lúpulo, pela qual é mais conhecida. E tive que deixar de fora deste texto muitos outros aspectos da sua atuação como, por exemplo, na política. Uma vez que nas suas pregações denunciava os vícios do clero e combatia as heresias, exercia, também nessa área, uma atuação pública incomum para as mulheres de sua época, ainda mais no meio religioso.

Ela foi canonizada em 1584 pelo Papa Gregório XIII. E, em 2012, o Papa Bento XVI concedeu a ela o título de Doutora da Igreja. Uma prova de que ciência e religiosidade não precisam se opor uma à outra.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CORNELL, Martyn. A short history of hops. Zytophile. 2009. Disponível em: http://zythophile.co.uk/2009/11/20/a-short-history-of-hops/. Acesso em 25/05/2021.

COSTA, Marcos Nunes. Mulheres Intelectuais na Idade Média: Hildegarda de Bingen – entre a medicina, a filosofia e a mística. Trans / Form / Ação. Marília, v. 35, 2012.

HILDEGARDA de Bingen. Wikipedia. Disponível em: Hildegarda de Bingen – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org). Acesso em: 02/09/2021.

MARTINS, Maria Cristina. Hildegarda de Bingen: Physica e Causae et Curae. Cadernos de Tradução. Número Especial, 2019, p. 159-174.

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões históricas sobre o saber médico e a prática da assistência. Anais da 4ª Jornada Científica CMS Waldir Franco. 2002.


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História

0 Comentário

    Deixe um comentário

    Login

    Welcome! Login in to your account

    Remember me Lost your password?

    Lost Password