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Balcão do Profano Graal: A cerveja como patrimônio cultural

Agosto pode ser para muita gente “o mês do desgosto”. Mas, certamente, não para os historiadores. É nesse mês que se comemoram duas datas importantes para quem trabalha com história. Dia 17 de agosto é o Dia do Patrimônio Cultural. E apenas dois dias depois (19 de agosto) se comemora o Dia do Historiador.

As datas estão diretamente ligadas, uma vez que a preservação do patrimônio cultural é uma das áreas de atuação do historiador. Mas o que isso tem a ver com a cerveja? Talvez você não saiba, mas em 2016 a cultura cervejeira belga foi declarada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela Unesco.  

Quando falamos em “patrimônio cultural”, a primeira ideia que vem à nossa cabeça é a de monumentos, obras de arte ou prédios antigos que são considerados dignos de preservação pelo seu valor artístico (estético/estilístico) ou histórico. Mas esses bens, que chamamos de “bens materiais” ou “patrimônio construído”, são só uma parte de todo o patrimônio cultural.

Ao seu lado, existe também o “patrimônio imaterial ou intangível”, que é preservado por outros valores que não têm a ver com o seu aspecto material, os seus valores identitários. Ou seja, porque faz parte da identidade de um determinado grupo social. Podem ser, por exemplo, formas de expressão (como danças e rituais), modos de fazer (como se constrói uma panela de barro, por exemplo), línguas (sejam as línguas nacionais ou dialetos regionais) e hábitos alimentares.

Em 2003, foi adotada pela Unesco a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Esse documento define o patrimônio cultural imaterial da seguinte maneira:

Práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo, assim, para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana

Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial

Em 2016, na 11ª reunião do Comitê de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Intangível da Unesco, decidiu-se incluir a cultura cervejeira belga entre os bens culturais dignos de preservação. É importante ressaltar que não são os estilos de cerveja belga, ou as cervejas trapistas ou o modo de produção da cerveja belga que foram declarados patrimônio cultural, mas a cultura cervejeira, algo maior do que um estilo ou um modo de produção. No site da Unesco, a cultura cervejeira belga é definida da seguinte maneira:

Fazer e apreciar a cerveja faz parte da herança viva de uma série de comunidades em toda a Bélgica. Desempenha um papel na vida diária, bem como nas ocasiões festivas. Quase 1.500 tipos de cerveja são produzidos no país por diferentes métodos de fermentação. Desde os anos 1980, a cerveja artesanal se tornou especialmente popular. Existem certas regiões, que são conhecidas por suas variedades particulares, enquanto algumas comunidades trapistas também se envolveram na produção de cerveja, dando lucros para instituições de caridade. Além disso, a cerveja é usada para cozinhar, inclusive na criação de produtos como o queijo lavado na cerveja e, como no caso do vinho, pode ser combinada com alimentos para complementar os sabores. Existem várias organizações de cervejeiros que trabalham com as comunidades em um nível amplo para defender o consumo responsável de cerveja. A prática sustentável também faz parte da cultura com o incentivo a embalagens recicláveis e novas tecnologias para reduzir o uso de água nos processos produtivos. Além de serem transmitidos no ambiente doméstico e social, conhecimentos e habilidades também são transmitidos por mestres cervejeiros que ministram aulas em cervejarias, cursos universitários especializados voltados para os envolvidos na área e na hotelaria em geral, programas públicos de treinamento para empresários e pequenas cervejarias-teste para cervejeiros amadores

Unesco

Essa definição ressalta a presença e a importância da cerveja na vida cotidiana das comunidades belgas, seja como forma de lazer, trabalho, fonte de renda ou ingrediente culinário. A transmissão desses saberes através de gerações fez com que essa presença se sedimentasse ao longo de séculos, tornando inseparáveis, hoje, a história da cerveja na Bélgica e a própria história cultural daquele país.

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Mas a definição faz menção também ao incentivo ao consumo responsável de cerveja e às práticas sustentáveis na sua produção, indispensáveis para que os hábitos e as práticas ligadas à cerveja não se tornem nocivos para a própria sociedade belga e para a humanidade como um todo.

A decisão do Comitê apresenta 5 razões para a inclusão da cultura cervejeira belga na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade:

  1. O fato de ela servir como um marcador de identidade para suas comunidades de cervejeiros, provadores, mediadores e zitólogos. O conhecimento e as habilidades são transmitidos de mestres para aprendizes em cervejarias, dentro das famílias, em espaços públicos e por meio da educação formal. Isso contribui para a constituição da identidade social e para a continuidade dos seus portadores e praticantes.
  2. A sua inscrição na lista contribui para a visibilidade e diversidade do patrimônio cultural imaterial, destacando a especificidade de um elemento que combina artesanato e alimentação, que tem evoluído continuamente para atender aos requisitos de desenvolvimento sustentável. Também serviria como exemplo inspirador de uma prática que foi revivida e cujos valores foram redescobertos e desenvolvidos após terem sido marginalizados. Esse ponto chama a atenção para o fato de que o mercado belga de cerveja, assim como outros mercados ao redor do mundo, passou por um processo de uniformização e abandono de antigas práticas e tradições ao longo do século XX.
  3. Chama a atenção para os esforços realizados pela Bélgica para reviver e salvaguardar a cultura cervejeira desde os anos 1970, assim como para o fato de as medidas de salvaguarda propostas (como, por exemplo, o desenvolvimento de qualificações profissionais, a promoção do elemento e o estabelecimento de um observatório da diversidade das artes cervejeiras e sua apreciação) levarem em consideração o aumento do consumo de álcool.
  4. O envolvimento das comunidades de “detentores do bem cultural”. A Federação dos Cervejeiros Belgas iniciou o processo de nomeação envolvendo cervejeiros, mediadores, professores e o público em geral, que participaram ativamente de uma série de reuniões preparatórias e consultivas e forneceram seu consentimento livre, prévio e informado para a inscrição.
  5. O fato de a cultura cervejeira belga já fazer parte dos inventários do patrimônio imaterial das três grandes comunidades belgas: flamenga, francesa e alemã.

Dessa forma, quando abrimos uma garrafa de cerveja (e não apenas de cerveja belga), aquilo que estamos bebendo não é só um líquido que nos ajuda a relaxar e matar a sede. Mas cerveja é também cultura, como explica Eduardo Marcusso.

Por meio das suas práticas de fabricação, degustação e toda a estruturação da atividade cervejeira, ela age como um elemento de conexão entre as pessoas, moldando hábitos e comportamentos que são passados de geração a geração, construindo heranças e identidades a partir de expressões culturais vinculadas à cerveja. Como patrimônio cultural que a cerveja é, em um copo pode estar contida a cultura e história de um povo.  


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL. DECRETO nº 3551, de 4 de agosto de 2000 – Institui o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: Página – IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

MARCUSSO, Eduardo Fernandes. Da cerveja como cultural aos territórios da cerveja: uma análise multidimensional. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Geografia da UnB. 2021.

UNESCO. Convention for the safeguarding of the intangible cultural heritage. Paris, 17 October 2003. Disponível em: Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial – UNESCO Digital Library

UNESCO. Dossier Culture de la bière en Belgique. Disponível em: Beer culture in Belgium – intangible heritage – Culture Sector – UNESCO


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História.

2 Comentários

  • carlos alberto tavares coutinho Reply

    19 de agosto de 2022 at 14:24

    17 de agosto – dia do patrimonio Cultural
    19 de agosto – dia do Historiador
    19 de agosto – dia do meu aniversário (também)

    • Sergio Reply

      23 de agosto de 2022 at 05:33

      Salve, salve meu nobre!
      Um belo dia para se fazer aniversário!
      Parabéns atrasados!

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