Balcão do Profano Graal: História da cerveja no Brasil – Começando do início
Quando se fala em história da cerveja no Brasil, uma questão que vem à cabeça da maioria das pessoas parece ser: qual foi a primeira fábrica de cerveja do país? E tenho certeza que, até bem pouco tempo atrás, a maioria das pessoas responderia sem hesitar que foi a Cervejaria Bohemia, de Petrópolis (RJ). Que, na verdade, era uma filial, fundada em 1853, da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional, de Henrique Leiden, surgida no Rio de Janeiro alguns anos antes. Em 1858, Leiden vendeu a sua filial de Petrópolis para outro imigrante alemão: Henrique Kremer. E apenas no ano de 1899, quando foi feita uma grande obra de modernização da fábrica, é que esta passou a se chamar Companhia Cervejaria Bohemia.
Mas essa afirmação é imediatamente contestada pelos pernambucanos, que fazem questão de lembrar que existiu uma cervejaria no Recife ainda no século XVII, durante o período de ocupação holandesa do Nordeste (entre 1630 e 1654). Essa cervejaria começou a funcionar em abril de 1641, sob o comando do mestre-cervejeiro Dirck Dicx, e ficou conhecida pelo nome de La Fontaine. Que era o nome da residência alugada ao governador Mauricio de Nassau pelo prazo de quatro anos, onde funcionou a cervejaria.
Dessa forma, não há dúvidas de que a cervejaria gerida pelos holandeses no Recife tenha sido a mais antiga fábrica de cerveja existente no território que futuramente viria a ser o Brasil. Mas Recife, àquela altura, não era ainda Brasil. E sim um enclave holandês em uma colônia portuguesa que estava sob o domínio espanhol (até 1640). Tanto que, quando partem os holandeses, a fábrica também deixa de funcionar. Então, a dúvida permanece: qual foi a primeira cervejaria do Brasil independente?
Em alguns anúncios da sua cervejaria, Henrique Leiden se denominava “o primeiro introdutor deste ramo de indústria no Brasil” (Almanak Laemmert, edição de 1857). E, na falta de maiores informações, durante muito tempo acreditamos nesse auto-marketing de Leiden. Há uma controvérsia em torno da data exata de abertura da sua fábrica no Rio de Janeiro. A data mais replicada é a de 1848, proposta por Carlos Alberto Tavares Coutinho. Mas Gilberto Freyre afirma que a edição de 22 de dezembro de 1869 do Diário de Pernambuco noticiava que Henri Joseph Leiden, “proprietário da grande fábrica de cerveja da Rua do Sebo”, havia sido agraciado pelo Imperador D. Pedro II com o Hábito da Rosa, por “ter sido ele o fundador da primeira fábrica de cerveja no Brasil no ano de 1842”. Qual a data correta, somente mais pesquisas poderão dizer.
Mas o seu alegado pioneirismo é contestado por um anúncio publicado no Jornal do Commercio (RJ) em 27 de outubro de 1836 da fábrica de Cerveja Brazileira (assim mesmo, com “z”). Na verdade, essa cervejaria publicou uma série de nove anúncios no periódico ao longo do segundo semestre de 1836. A maioria deles repete o mesmo texto:
“Vende-se na rua de Matacavallos nº 90 e na Rua Direita nº 86, a Cerveja Brazileira, acolhida favoravelmente e muito procurada. Esta saudável bebida reúne a barateza a um sabor agradável e à propriedade de conservar-se muito tempo, qualidades estas que serão mais apreciadas à medida que o uso da dita cerveja se tornar mais geral. Compram-se as garrafas vazias a 60 rs cada uma”.
Agora vejam como é fascinante a pesquisa histórica. Quando começávamos a nos acostumar com a ideia de que antes da Bohemia, já existia outra fábrica de cerveja no Brasil independente, eis que surge um anúncio na edição de 15 de dezembro de 1832 do Correio Mercantil (RJ) que diz o seguinte: “Na fábrica de cerveja da rua d’Ajuda n. 67, acha-se a melhor cerveja muito em conta. O uso dela, durante o esiio [sic] é o mais apropriado possível para conservar o tom do estômago, que o calor excessivo tende a debilitar, disposição perniciosíssima quando o cólera morbus está se aproximando”. No dia 28 do mesmo mês e ano, a cervejaria volta a anunciar seus produtos no mesmo periódico:
Na rua d’Ajuda n. 67, acha-se a excelente cerveja nacional, muito boa para conservar nesta estação quente as forças digestivas, e mormente quanto estamos ameaçados pela invasão do cólera morbus, o preço é muito cômodo e, para as pessoas mais delicadas, usada com água ela prova magnificamente: dá vontade de comer e ativa a circulação.
Por esse segundo anúncio ficamos sabendo que a fábrica se chamava Cerveja Nacional. E que a cerveja era vendida por suas propriedades terapêuticas, principalmente durante o verão. E também que se recomendava bebê-la diluída em água para abrir o apetite e “ativar a circulação”. De quebra, o anúncio ainda nos lembra que o mundo passava por uma pandemia de cólera, que durou de 1826 a 1837. Mas essa doença vai desembarcar no Rio de Janeiro apenas em 1855, vitimando 11.180 pessoas.
Mas, como eu gosto de dizer, a pesquisa histórica é como um quebra-cabeças às avessas. Cada peça que se encaixa, abre um monte de novas lacunas. E, infelizmente, até agora não temos informações mais detalhadas sobre o funcionamento seja da Cerveja Brazileira, seja da Cerveja Nacional. Como, por exemplo, quem eram os seus proprietários, que estilos de cerveja elas produziam ou quanto tempo duraram.
Mas, já podemos afirmar com segurança que, por ora, o bastão do pioneirismo na produção de cerveja no Brasil independente não cabe nem a Henrique Leiden, nem à Cerveja Brazileira, mas sim à misteriosa Cerveja Nacional. Mas, tem muita pesquisa ainda a ser feita…
Referências Bibliográficas:
COUTINHO, Carlos Alberto Tavares. Cervisiafilia: a história das antigas cervejarias. Disponível em: http://cervisiafilia.blogspot.com.br/
FREYRE, Gilberto. Nós e a Europa germânica: em torno de alguns aspectos das relações do Brasil com a cultura germânica no decorrer do século XIX. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1971.
KÖB, Edgar. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 161 (409), 2000, p. 29-58.
PIMENTA, Tania Salgado; BARBOSA, Keith; KODAMA, Kaori. A província do Rio de Janeiro em tempo de epidemia. Dimensões. Espírito Santo. Vol. 34, 2015, p. 145-183.
ROTOLO, Tatiana; MARCUSSO, Eduardo. A cerveja no Brasil holandês: notas sobre a instalação da primeira cervejaria do Brasil. Contextos da alimentação: Revista de comportamento, cultura e sociedade. São Paulo: Centro Universitário Senac. Vol. 6, nº 1, Julho 2019, p. 73-93.
Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História
4 Comentários
Sérgio
18 de maio de 2021 at 07:57Prezado,
Muito obrigado pelas suas gentis palavras.
E parabéns pelo seu extensivo trabalho de pesquisa, que é sempre uma referência sobre o tema.
CARLOS ALBERTO TAVARES COUTINHO
18 de maio de 2021 at 11:25Continuando o que comecei ontem e que parei por falta de tempo. O que vou escrever, meu abnegado escritor cervejeiro, não leve como crítica e sim como incentivo às suas pesquisas.
Eu jamais me detive em procurar saber qual a primeira fábrica de cerveja, já que depende do referencial de cada um. O que é fabrica ??? É um local onde se faz ??? Eu considero quem faz. No caso, os brasileiros (índios) foram os primeiros com suas fermentações. Se considerar o estabelecimento foram os migrantes, excluindo os holandeses que faziam para consumo próprio (?) não sei havia venda (muito pouco eu sei). Só a partir de 1824 com os que vieram e se estabeleceram nas diversas colônias, mas o desenvolvimento cervejeiro não foi exercidos em fábricas mas sim domesticamente e principalmente pelas mulheres, a atividade cervejeira era uma atividade de cozinha, este produto não era destinado ao comercio mas sim para consumo das famílias até que passaram a fazer trocas com o excedente (o dinheiro era difícil), mas como a lei da oferta e da procura dita a economia, logo a procura fez com que se fabricasse para trocas e vendas deixando de ser produto da cozinha para ser fabricação de produto artesanal comercializável. Baseado nisto a primeira fábrica que se tem notícia é de 1825, no Núcleo urbano de São Leopoldo, no Rio Grande do sul, onde Ignácio Raschi abriu um armazém, criou a primeira fábrica de cerveja do Rio Grande do Sul e um serviço de barcas no Rio do Sinos
Espero que seus artigos despertem o interesse e a curiosidade dos seus leitores fazendo que a cada dia apareçam mais e mais pesquisadores desta parte da História do Brasil que não aparece em livros nem se aprende na escola. Parabéns, amigo.
Sérgio
19 de maio de 2021 at 05:46Muito obrigado pela sua contribuição.
Compartilho desses questionamentos sobre a natureza dos estabelecimentos fabris: o que define uma fábrica? Volume de produção? Maquinário? Processos produtivos? O que diferencia uma fábrica de uma manufatura (termo também muito utilizado na época)? E por que deveríamos considerar as fábricas mais importantes do que a produção caseira?
Abordei essa questão da primeira fábrica no meu texto porque parece ser aquela que mais atrai a curiosidade do público leitor. Mas, sem dúvida, está longe de ser a questão mais interessante dessa longa história.
Um abraço