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Artigo da Sara: “Estou tentando me curar e lutando por justiça”

Em texto ao Guia, Sara Araujo comenta os efeitos pessoais de ter sido alvo de racismo e como tem lidado para superar as dores do caso

*Por Sara Araujo

No dia 14 de agosto de 2020, no final da tarde, meu celular começou a receber um bombardeio de mensagens. No auge da pandemia, levei um susto, pois aquilo não era habitual. Levantei assustada. Da minha mesa de trabalho saí correndo para pegar o celular, que estava um pouco distante. Pensei que algo havia acontecido com minha família, que mora há mais de 400 quilômetros de mim. No auge da pandemia, a única coisa que pensei foi: aconteceu algo com minha mãe, meus irmãos e irmã, meus sobrinhos e sobrinhas.

Não, não era nenhuma notícia ruim sobre eles. Eram prints de mensagens que estavam circulando naquele dia sobre mim. Um monte de mensagens horríveis, violentas e desumanizadoras. Uma imagem minha, retirada do meu Instagram, foi levada para dentro de um grupo de homens hospedados no aplicativo WhatsApp, chamado de Cervejeiros Iluminati.

Leia também – Concurso Brasileiro tem envolvido em atos racistas de 2020 na organização, afirmam Abracerva, AfroCerva e 12 cervejarias; Organização nega

Quando comecei a ler as mensagens, comecei a tremer, a vomitar. Me deu uma crise de diarreia, fiquei o dia inteiro no banheiro. Assustada com tudo aquilo, chorava, tremia. Não conhecia aquelas pessoas que me agrediram, não sabia quem eram, todos homens brancos. Perguntei para duas mulheres do mercado cervejeiro e uma jornalista, com a qual eu estava fazendo um trabalho sobre cerveja e que conhecia o mercado, se elas conheciam aquelas pessoas. Disseram que conheciam algumas delas e que não estavam acreditando no que liam.

No final da noite, cheia de dor, fiz um post na minha rede social, divulgando algumas das mensagens. A minha vontade era de colocar todas, mas o Instagram limita o número de fotos em uma única postagem. Não divulguei os nomes e nem os telefones. Queria que eles soubessem que eu sabia o que fizeram e queria que o mercado cervejeiro soubesse que abrigava em seu meio pessoas racistas.

Os dias e meses que se seguiram foram de muito sofrimento. Adoeci, passei dias na cama, com amigas de perto e de longe me dando suporte, enviando mensagens, comida, me encorajando a sair da cama, a levantar e tomar um banho. Tive que procurar ajuda psicológica, porque sozinha não conseguia me movimentar. Logo após, mergulhei freneticamente no trabalho, com a finalidade de melhorar, esquecer a dor.

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Mas as coisas só pioraram. Desenvolvi alguns problemas de saúde sérios. Inclusive, crises de asmas e brônquicas que estavam controladas, se acentuaram. Hoje, faço uso de alguns remédios e tive que usar uma bombinha, que irá me acompanhar pelo resto da vida. Gastei horrores em consultas, exames e remédios.

Para acompanhar o caso, contratei advogados. Para que nada se perdesse, eles estavam sempre atentos ao prazo de prescrição da (do crime de) injúria racial (era de 6 meses), mas respeitando meu estado de saúde, que estava bem debilitado.

Fui à delegacia dentro do prazo previsto em lei. E aqui, um adendo. Vá no primeiro dia ou no último. O importante é denunciar. Se você for vítima, saiba disso.

Eu estou tentando me curar e lutando por justiça, porque esses crimes não podem ficar impunes.

Uma das coisas que meus agressores fizeram após a repercussão do caso foi espalharem que as mensagens não eram verdadeiras. Trabalho no sistema judiciário e é comum no campo da literatura jurídica o agressor tentar descredibilizar a vítima. Ou, até mesmo, tentar culpá-la.

Estou a cada dia me fortalecendo, vivendo um dia de cada vez e espero que todas aquelas pessoas que me agrediram sejam responsabilizadas.

Em tempo, para que todos e todas saibam, o crime de racismo, alocado no artigo 20 da Lei Federal 7.716/89, é imprescritível. Ou seja, pode ser denunciado a qualquer tempo.

O crime de injúria racial, disposto no artigo 140, § 3º do Código Penal, prescrevia em 6 meses, após o conhecimento dos fatos pela vítima, cabível a representação da vítima. Em recente decisão do STF, o crime de injúria racial foi equiparado ao crime de racismo nos moldes do artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal. Isso significa que o referido crime não prescreve e pode ser denunciado a qualquer tempo.

Deixo um apelo às pessoas negras que sofrem esses tipos de crimes: não se calem, denunciem, reúnam o máximo de provas e lutem por justiça. Essas pessoas não podem continuar praticando crimes e saindo impunes.

Não é fácil, é adoecedor, mas a dor não vai embora se não denunciarmos.

Eu decidi denunciar. Como pontuou Audre Lorde, o silêncio não me protegeu. Então, que eu possa usar a minha voz para lutar por justiça, por mim, pois a dor é absurda, e para que outras pessoas que passaram pelo que eu passei, sintam-se fortes para lutar e, principalmente, para que as pessoas que me agrediram, não façam isso a mais ninguém.


*Sara Araujo é sommelière de cervejas, acadêmica de Ciências Sociais e pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica

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