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Balcão do Jayro: Davi versus Golias

Histórias e mitos sobre cultura cervejeira assim como a origem de pratos que tem grande representatividade no mundo gastronômico me encantam. Um ícone como Michael Jackson – o Beer Hunter, não o popstar – um dos pioneiros a escrever sobre cultura cervejeira de forma ampla, já foi contestado em alguns momentos. Tal qual no mundo da cerveja, no mundo da gastronomia existem diversas “verdades universais” que, por vezes, não se sustentam em fatos.

Como fio condutor para a coluna, pensei em gastronomia brasileira, o que invariavelmente me levou a pensar em feijoada. É um prato icônico, representante da gastronomia brasileira mundo afora – apesar de não estar tão presente assim na mesa do brasileiro, como bem destacou a jornalista e chef Larissa Januário em sua mesa no congresso “Cerveja é Gastronomia”, promovido pela Abracerva em parceria com o Sindicerv no final de junho/22.

Ao pesquisar sobre feijoada, me deparei com o livro “A culinária caipira da Paulistânia – a história e as receitas de um modo antigo de comer ”, de autoria do sociólogo Carlos Alberto Dória e do Chef Marcelo Côrrea Bastos, ambos estudiosos de Luiz da Câmara Cascudo e da alimentação no Brasil:

Diferentemente do que diz o folclore – que a feijoada nasceu nas senzalas, do aproveitamento das partes do porco desprezadas pelos senhores de engenho -, é evidente a origem ibérica do prato, semelhante a uma infinidade de comidas típicas de Portugal e da Espanha, cujos povos têm grande apreço pelas partes do porco tidas como menos nobres

A culinária caipira da Paulistânia – A história e as receitas de um modo antigo de comer, p. 237

Em pesquisa no livro “A história da Alimentação no Brasil”, de Luiz da Câmara Cascudo, cheguei em dado semelhante, de que a feijoada seria um sincretismo entre o guisado de feijão (ibérico) e a farinha (indígena).

Fiquei perplexo, não foi isso que aprendi na escola. Tentei contato com algumas pesquisadoras da cozinha diaspórica africana que, infelizmente, não retornaram a tempo. Consigo falar com Larissa Januário que, em resumo, me diz que o assunto é bem complexo, mas que os africanos escravizados quase não tinham acesso a carne, ainda mais os pertences (partes menos nobres), muito amados na Europa Ocidental. E que é muito difícil contestar Câmara Cascudo sendo ele a única fonte. Vale lembrar que, mesmo que documental, a história também é a narrativa contada pelos vencedores – leiam-se aqui dominadores, colonizadores etc.

No entanto, destaca Larissa que a origem do feijão não é europeia, que a feijoada como conhecemos hoje é algo relativamente novo, nasceu no Rio de Janeiro. E por último, tão importante quanto a maternidade do prato é que “sempre foram as mãos negras que moldaram os temperos porque elas cozinhavam”.

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E o que pensamos em harmonização quando falamos de feijoada?

Não, feijoada não harmoniza com Witbier. Não “tecnicamente”. Quando pensamos em harmonização, o primeiro item a se considerar é o equilíbrio de forças, seguido pelo diálogo (semelhança, contraste, complementação, efeito de cancelamento etc.). Feijoada é um prato extremamente pesado, gorduroso, cheio de aromas e sabores defumados e condimentados. Em contraste, Witbier é uma cerveja leve, refrescante, bem carbonatada, com aromas cítricos e condimentados provenientes da casca de laranja, semente de coentro e subprodutos de fermentação. Para equilibrar potências em uma harmonização, lançamos mão de quatro elementos da cerveja – acidez, carbonatação, amargor e teor alcóolico. O que a Wit tem? Boa carbonatação e um sopro de acidez. Davi, aqui representado pela nobre Wit, seria engolido por Golias. Contraste de “Forte vs. Fraco” só funciona nas ficções. O mundo real é bem mais cruel. Contraste é doce equilibrando amargo, ácido equilibrando doce e por aí vai.

Uma Dubbel, uma Doppelbock, uma Rauchbier (Bock ou Weizenbock), cada qual com sua particularidade se encontram muito bem com a feijoada. 

Mas…

Salta cerveja estupidamente gelada prum batalhão”, já dizia Chico Buarque em “Feijoada Completa”, música de 1978. A tríade feijoada, American Lager e caipirinha continua firme e forte. American Lager também não harmoniza tecnicamente com feijoada, tem menos intensidade e complexidade que um Wit.  Mas, culturalmente falando, é isso que majoritariamente se bebe em conjunto com a feijoada, afinal, o preparo é quase uma cerimônia ritualística, seu consumo é feito geralmente por um grande número de pessoas e, geralmente, por muitas horas. E não dá para beber Dubbel, Doppelbock ou qualquer outra cerveja mais alcóolica por muitas horas – falta “bebabilidade”, drinkability – sem ser derrubado. Eu, ao menos, não consigo. Há claro espaço aqui para “concessão técnica”. Portanto, seja feliz com seu “pilsão mainstream”, com uma Dubbel, com uma Rauch. Ou com uma Wit. Recorda-se da primeira coluna? O contexto é mais importante!

Saúde!


Jayro Neto é sommelier de cervejas e Mestre em Estilos, tendo sido campeão do Campeonato Brasileiro de Sommelier de Cervejas de 2019. É organizador de concursos da Acerva Paulista e juiz certificado pelo BJCP (Beer Judge Certification Program) com experiência nacional e internacional em concursos de cerveja. Também atua como conselheiro fiscal e tesoureiro da Abracerva.

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