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Balcão do Jayro: Nós, os bárbaros…

Nós, os bárbaros, somos os vencidos. Relegados às adjacências do império, se opondo a sua expansão, nos embriagávamos de cerveja, seja na vitória ou na derrota. Cerveja essa que também abastecia o front inimigo, posto que era mais barata e acessível. Nossa bebida não estava no Concílio de Nicéia e não representa o divino –  o sangue de Cristo –  tão pouco era servida em belos e monumentais cálices adornados.

Somos os vencidos e a história, como comentei na coluna anterior, é também a narrativa dos vencedores. O status do vinho à mesa não é de hoje, estamos falando de uma construção cultural ocidental dominante de quase dois milênios. E sim, uma interação vinho e gastronomia bem construída é um paraíso, desde grandes vinhos do Velho Mundo até os “novos” vinhos laranjas.

Mas Jayro, cerveja é melhor do que o vinho quando se fala de harmonização? Do ponto de vista técnico, posso afirmar sem medo de errar que sim. Olhemos com mais cuidado: quando se fala de harmonização, falamos de equilíbrio e diálogo. Um bom equilíbrio de forças é, basicamente, o “controle” das gorduras do prato feito pela bebida. E quais são os elementos presentes no vinho e na cerveja? Ao passo que o vinho dispõe apenas de força alcoólica e acidez, a cerveja traz os mesmos elementos que o vinho, acrescido de carbonatação e amargor, ambos com grande potência de limpeza “adstringente”. Quatro pontos para cerveja, dois para o vinho – com exceção dos espumantes, que também trazem carbonatação. E o diálogo seja por semelhança, contraste, complementação? Aqui a cerveja é rainha absoluta, basta comparar a intensidade das notas aromáticas e de sabores. Enquanto os aromas e sabores (primários, secundários e terciários) do vinho são sutis e elegantes, na cerveja é “In your face, bitch”:  aromas de maltes tostados e torrados apresentam muitas notas de cereais, caramelos, panificação, café, chocolate, frutas secas; lúpulos trazem aromas explosivos de frutas cítricas, tropicais ou as elegantes notas florais, herbais, terrosas e picantes de lúpulos do Velho Mundo; a fermentação brilha e traz ésteres e fenóis em intensidade muito alta no caso de Ales belgas ou de cervejas de fermentação espontânea/mista, por exemplo. E por aí vai. Não é uma competição justa, por assim dizer.

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Mas se é uma competição tão injusta, porque é tão raro ver uma cerveja à mesa em um “fine dinning”? Voltemos ao começo da coluna, a construção social do status do vinho e, consequentemente, da cerveja é algo secular. E como mudar isso? Faço coro ao recente artigo[1] publicado na Farofa Magazine do grande Diego Simão Rzatki, fundador da cervejaria Cozalinda:

“É obrigação nossa dialogar mais com os sommelières de vinho para entrar no “fine dinning”. Não adianta ficar sonhando que cada local vai ter também um sommelier de cerveja, só vai acontecer em casos muito especiais, como projetos voltados para isso, ou de restaurantes de fama internacional que tem poder econômico para tanto (o que já é uma realidade no exterior nos estrelados Michelin).

E só para deixar claro, essa minha insistência na importância de entrar em “fine dinning” não é por prestígio ou capricho. São restaurantes que ditam tendências para o mercado de gastronomia. O movimento é de cima para baixo, funciona como ferramenta para educar restaurantes sobre a possibilidade de harmonizar cerveja e comida. […]”

Vou além: você, sommelier de cervejas que lê essa coluna é, antes de tudo, um contador de histórias. Explore isso ao máximo, uma experiência memorável vale muito mais do que técnica e avaliação sensorial! Se somos os vencidos, que tal começarmos a contar a nossa história? Tenha em mente que não é algo para hoje a criação de qualquer consciência é um trabalho árduo, contínuo e moroso. 

Uma mensagem final: por ironia do destino, eu, franco defensor da dita “superioridade” da cerveja à mesa tive a melhor experiência até hoje com….vinho! Chocolate 70% de cacau, vinho do Porto Tawny e um charuto cubano H. Uppmann Half Corona. Sólido, líquido e gasoso em perfeita harmonia, um deleite! Portanto, fique com a mente (e com todos sentidos) aberta!

Saúde!


[1] https://www.farofamagazine.com.br/artigos-da-farofa-magazine/harmonizacao-sommelier-vinho/


Jayro Neto é sommelier de cervejas e Mestre em Estilos, tendo sido campeão do Campeonato Brasileiro de Sommelier de Cervejas de 2019. É organizador de concursos da Acerva Paulista e juiz certificado pelo BJCP (Beer Judge Certification Program) com experiência nacional e internacional em concursos de cerveja. Também atua como conselheiro fiscal da Abracerva.

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