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Balcão do Profano Graal: História da cerveja no Brasil – A cerveja como forma de lazer

Uma questão que frequentemente ocupa a cabeça de quem estuda história da cerveja é: como ela veio a se tornar a bebida preferida dos brasileiros, superando o vinho (importado de Portugal em grandes quantidades desde o período colonial), a cachaça (um produto tipicamente nacional) e outras bebidas fermentadas à base de frutas, açúcar, milho ou farinha de mandioca muito populares até o século XIX, como o aluá, o jacubá, o xibê e a jinjibirra (esta última, uma bebida originária do Caribe, produzida com gengibre e muito semelhante à cerveja)?

Essa preocupação está, inclusive, expressa no título de um artigo de Edgar Köb, leitura obrigatória para qualquer um que queira estudar história da cerveja no Brasil. Em Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a indústria da cerveja no Brasil desde o início até 1930 (2000), ele cita como fatores para a popularização do consumo de cerveja no Brasil, ainda no século XIX: o hábito das classes mais abastadas de imitar o estilo de vida europeu; a abolição da escravidão e a formação de uma classe de trabalhadores com poder de consumo; o desenvolvimento econômico no princípio do período republicano; o crescimento de grandes cidades como mercados consumidores e uma campanha de temperança que aconselhava o consumo de cerveja como uma bebida mais saudável que a cachaça e mais adaptada às condições tropicais do país.

Mas outro fator parece ser mais importante do que esses: a relação da cerveja com o lazer. Como mostram Thaina Schwan Karls e Victor Andrade Melo, ainda em meados do século XIX, as fábricas de cerveja no Rio de Janeiro, além de venderem a bebida, ofereciam outras formas de entretenimento. Dois anúncios publicados no Almanak Laemmert, nos anos de 1856 e 1857, de duas cervejarias diferentes que tinham o mesmo nome e ficavam na mesma rua, exemplificam essa relação entre cerveja e lazer. Primeiro, o anúncio da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional, de Alexandre Maria Villasboas e Cia., fundada em 1855 e que ficava na Rua de Matacavallos, 27:

“Esta fábrica, já tão conhecida e frequentada pelos amadores desta corte, é por sem dúvida a mais bem montada que neste gênero existe no Império do Brasil e com todas as proporções para vir a ser o mais útil e agradável recreio dos fluminenses, já pela extensa e pitoresca chácara em que está situada, pois naturalmente convida ao passeio o constante panorama que ao correr dos olhos se desliza, já pela multiplicidade de jogos, como sejam os de bola, bagatela, etc. etc., que oferece um exercício tão útil à saúde do corpo e do espírito, para o que nada tem poupado os seus proprietários”. (Almanak Laemmert, 1856, p. 627)

A então rua de Matacavallos é a atual rua do Riachuelo, em pleno centro barulhento e engarrafado do Rio de Janeiro. Mas, em meados do século XIX ela se encontrava em uma região fronteiriça do centro, no limite entre o rural e o urbano, a caminho da Tijuca, espremida entre as encostas do Morro de Santa Teresa e do Senado (que ficava onde hoje é a Praça da Cruz Vermelha, demolido entre 1895 e 1906), em um ambiente cercado de muita vegetação nativa.

A edição de 8 de abril do mesmo ano do jornal Correio da Tarde traz um relato de um anônimo, que visitou a fábrica a convite do seu proprietário. Como relatam Karls e Melo, chamou a atenção do convidado a gentileza dos funcionários, “a conversa animada que se dava não só ao ar livre, à luz do luar, como também no salão, iluminado a gás (…). Jovens fazendo ginástica em aparelhos oferecidos pela fábrica, bem como apresentações musicais e danças” (KARLS e MELO, p. 150). O segundo anúncio é da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional de Henrique Leiden, fundada em 1848, que funcionava na rua de Matacavallos, 78:

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Achando-se o seu estabelecimento em um dos sítios mais amenos desta corte, a sua visita se recomenda a todos os amadores de recreios honestos e sociais, os quais, além de ótima cerveja de vários gostos, encontrarão arranjos cômodos, caramanchões, diversos jogos e boas companhias

Almanak Laemmert, 1857, p. 95

Afirmam Karls e Melo que o seu funcionamento era similar ao da fábrica de Villasboas e Cia., com frequentes apresentações musicais e de exercícios ginásticos, com performances de amadores que usavam os aparelhos de ginástica oferecidos pela fábrica. Em determinado momento, Leiden fundou também um teatro no espaço da fábrica. Que, em 1861, se chamava Teatro da Imperial e Antiga Fábrica de Cerveja.

Eduardo Marcusso, por sua vez, nos informa que foi fundamental para a popularização do consumo de cerveja no Brasil a sua relação com as grandes festividades de expressão nacional, como o carnaval, reforçando essa relação entre cerveja e lazer. Em 1913, o rancho carnavalesco Recreio das Flores, da região portuária do Rio de Janeiro (que viria a dar origem à escola de samba Império Serrano) já havia sido patrocinado por uma cervejaria. Essa relação se estreitou depois que o desfile das principais escolas de samba passou a ser realizado na avenida Marquês de Sapucaí, endereço da primeira fábrica da Cervejaria Brahma (fundada em abril de 1888). No carnaval de 1934, para promover as vendas da sua cerveja engarrafada, a Brahma lançou a marchinha “chope em garrafa”, considerado o primeiro jingle da publicidade brasileira, composta por Ary Barroso (compositor de “Aquarela do Brasil”) e Bastos Tigre (jornalista e publicitário, criador do slogan “Se é Bayer, é bom”) e cantada por Orlando Silva, também conhecido como “o cantor das multidões”, que fez muito sucesso na era do rádio.

Dessa forma, a associação do consumo de cerveja à uma vida saudável, a momentos de lazer e de grandes festividades foi uma forma encontrada pelas cervejarias brasileiras para impulsionar as suas vendas. E foram tão bem-sucedidas nessa estratégia que a cultura cervejeira do brasileiro está hoje indissociavelmente ligada ao consumo de cerveja em momentos de lazer, festa e descontração.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMANAK Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de janeiro para o ano de 1856. Tipografia Eduardo e Henrique Laemmert: Rio de Janeiro, 1856.

ALMANAK Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de janeiro para o ano de 1857. Tipografia Eduardo e Henrique Laemmert: Rio de Janeiro, 1857.

KÖB, Edgar. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 161 (409), 2000, p. 29-58.

MARCUSSO, Eduardo Fernandes. Da cerveja como cultural aos territórios da cerveja: uma análise multidimensional. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Geografia da UnB. 2021.

MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. Cerveja e Aguardente sob o foco da temperança no Brasil, no início do século XX. Revista Eletrônica de História do Brasil. v.9, n.1, jan-jul 2007, p. 48-70.

MELO, Victor Andrade; KARLS, Thaina Schwan. Novas dinâmicas de lazer: as fábricas de cerveja no Rio de Janeiro do século XIX (1856-1884). Movimento: Revista de Educação Física. Porto Alegre, vol. 24, n.1, p. 147-160, jan./mar. 2018. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/download/69803/47800


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História.

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