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Balcão do Profano Graal: Santo Arnulfo de Metz – Entre a política e a cerveja

Hoje, se comemora o dia de Santo Arnulfo de Metz, padroeiro dos cervejeiros. E é uma boa ocasião para sabermos um pouco mais sobre a história de mais esse “santo cervejeiro”. Se o tema te interessa, já falamos por aqui de Santa Brígida e São Patrício, padroeiros da Irlanda, nas colunas de fevereiro e março.

Arnulfo nasceu em uma família nobre da Áustria, por volta de 582. Ainda jovem, foi enviado para ser educado na corte da Austrásia, durante o reinado de Teodeberto II (595-612). Esse reino estava localizado no nordeste da atual França, mas compreendia também partes da atual Alemanha, Bélgica e Países Baixos. A sua capital era a cidade de Metz, embora alguns de seus reis tivessem a corte em Reims. Por isso era também chamado de Reino de Reims ou de Metz.

Com a morte precoce de Teodeberto (com apenas 26 anos), assume a regência a sua avó Brunilda. Com a intenção de derrubá-la do trono, Arnulfo, então alto funcionário do reino e integrante da nobreza da Austrásia, juntamente com outros nobres, pede ajuda para Clotário II (584-629), rei da Nêustria (região que ia desde a Aquitânia até o Canal da Mancha, correspondente a maior parte do norte da atual França). Deposta e morta a regente, Clotário se torna rei de toda a Frância e recompensa Arnulfo nomeando-o 27º Bispo de Metz e dando-lhe um posto em seu conselho. Seu prestígio na corte de Clotário era tamanho que foi também tutor do seu filho, Dagoberto. E, quando este se tornou sub-rei da Austrásia (em 623), foi seu principal ministro, participando na administração da Justiça e na indicação de ministros e oficiais.

Porém, quando Dagoberto sucedeu seu pai como rei da Frância (em 629), dispensou seus serviços. Arnulfo então renunciou ao bispado e passou a viver uma vida de eremita em Remiremont, até falecer em 18 de julho de 640 ou 641. Para quem viria a ser canonizado, em vida Arnulfo parece ter demonstrado muito mais interesse pela política do que pela religião. Com exceção, talvez, dos últimos 10 ou 12 anos, quando viveu em reclusão.

Seus dados biográficos também não parecem indicar nenhuma ligação especial com a cerveja. A sua imagem como santo cervejeiro parece ter sido construída postumamente. O culto a Arnulfo se inicia logo após a sua morte. Um ano após esse fato, seu corpo foi levado de volta para Metz para ser sepultado na Abadia dos Santos Apóstolos (que viria a se chamar Abadia de Santo Arnulfo, a partir de 717). As lendas dizem que, durante o traslado do seu corpo, os peregrinos pararam para descansar e saciar a sede em uma taberna na cidade de Champignuelles que, infelizmente, possuía em seu estoque apenas uma caneca de cerveja. Milagrosamente, a quantidade de líquido na caneca não diminuía enquanto todos compartilhavam a bebida.

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As lendas em torno de seus milagres também afirmam que, em seus sermões, Arnulfo recomendaria o consumo de cerveja ao invés de água que, naquele período, nem sempre era própria para o consumo humano devido às condições precárias de higiene. O processo de fervura e fermentação da cerveja eliminaria muitos dos microrganismos perigosos. A esse respeito, já discuti esse “mito medieval da água” a partir de pesquisas sobre o abastecimento de água das cidades medievais em uma live feita no meu Instagram. Se você tem interesse em saber mais sobre o assunto, pode procurar essa live no meu IGTV ou no meu canal do Youtube.

Mas aquele que parece ter sido o seu principal milagre não tem nenhuma relação com a cerveja. Arnulfo, passando por cima de uma ponte sobre o Mosela, atirou ao rio o seu anel episcopal e, orando, pediu a Deus para fazer dele um símbolo de perdão dos pecados. Algum tempo depois, encontraram nas vísceras de um peixe um anel episcopal. Por meio desse peixe, Deus teria entrado indiretamente em contato com Arnulfo, que foi lavado dos seus pecados, fazendo dele um legítimo representante Seu na Terra. E, por isso, em algumas representações ele aparece segurando um peixe. Curiosamente, essa história é muito parecida com a lenda em torno da fundação da Abadia de Orval. 

Conhecido também pelo seu nome anglicizado, Arnoldo, sua história é frequentemente confundida com a de outro santo cervejeiro: Santo Arnoldo de Soissons (1040-1087), pois os milagres atribuídos aos dois santos são parecidos e aparecem misturados, dependendo da fonte. Essa confusão é compreensível uma vez que, como já expliquei por aqui, as vidas de santos são tão repletas de mitos que se torna difícil separar fatos e ficção. Uma dessas confusões envolve uma afirmação feita pelo jornalista inglês Michael Jackson (o “Beer Hunter“), no seu livro Great Beers of Belgium, que diz que, durante uma terrível crise de peste nas cidades de Oostende e Bruges, na Bélgica, o santo teria mergulhado um crucifixo em um tonel de cerveja, assegurando que ela era mais segura para consumo do que a água. Pelo que parece, Jackson estava se referindo a Arnoldo de Soissons, mas em algumas fontes esse mesmo milagre é atribuído a Arnulfo de Metz.

Diferentemente dos outros santos já citados nesta coluna, a santificação de Arnulfo não está relacionada à cristianização de regiões célticas, mas ao processo de afirmação e legitimação do poder da Dinastia Carolíngia, que desenvolveu uma consistente e extremamente eficaz política de criar genealogias fictícias e gloriosas colocando como antepassados de Carlos Magno (742-814) personagens da maior projeção e dignidade. Neste contexto, ter um santo como ancestral conferia à dinastia um carisma todo especial. Mas não é inteiramente seguro que Arnulfo tenha sido de fato antepassado dos carolíngios. Mesmo assim, não deixa de ser significativo que a sua canonização, assim como parece ter sido a sua vida, esteja mais associada a fatos políticos do que religiosos.


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História

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