fbpx

Balcão do Profano Graal: Santos cervejeiros – Santa Brígida de Kildare

Salve, nobres!

Neste mês, quero falar de um aspecto curioso da cultura medieval europeia, que surgiu da junção entre antigas tradições pagãs (celtas) e os novos hábitos cristãos que se espalhavam pela Europa após a queda do Império Romano: o surgimento de santos cervejeiros. Conhecidos assim não necessariamente porque produzissem cerveja (pelo menos de forma convencional), mas porque alguns dos milagres atribuídos a eles envolvem a “santa bebida”. E, por esse fato, alguns foram logo adotados como patronos das comunidades de cervejeiros. Em fevereiro, são comemorados dois desses santos cervejeiros: Santa Brígida de Kildare e Santo Amândio. Neste texto, quero me concentrar sobre a figura de Santa Brígida de Kildare.

As vidas de santos, principalmente daqueles do início do cristianismo, são tão repletas de mitos que se torna difícil separar fatos e ficção. Algumas pessoas podem argumentar que historiadores devem se ocupar apenas de fatos históricos devidamente registrados por documentos e não de mitos. Mas os mitos também fazem parte da história. São criações humanas que cumprem finalidades sociais e influenciam comportamentos ao longo do tempo. E, como dizia o historiador francês Marc Bloch (1886-1944), nada do que é humano deve ser estranho ao trabalho do historiador.

Brígida de Kildare (453-525), conhecida na Irlanda como Naomh Bhríde, foi uma freira irlandesa, fundadora do mosteiro de Kildare (em 480). É considerada padroeira da Irlanda juntamente com São Patrício e São Columbano. Segundo a tradição, teria nascido em Faughart, filha de mãe católica e pai pagão, tendo se convertido ao cristianismo inspirada pela pregação de São Patrício, pioneiro da cristianização da Irlanda. Muitas histórias e lendas atribuídas a ela envolvem cerveja. Como, por exemplo, a história de que um viajante sedento teria chegado a Kildare e Brígida, sem nada para oferecer-lhe, transformou a água que havia usado em seu banho em cerveja. Em outra, Brígida teria enviado a uma paróquia um barril de cerveja que se multiplicou ao longo do caminho, acabando por abastecer 18 igrejas da região. Ela morreu em Kildare e foi enterrada em um túmulo na igreja de sua abadia. Um poema do século X atribuído a ela começa com as seguintes palavras:

Publicidade

Eu gostaria de dar um grande lago de cerveja para o Rei dos Reis.
Eu gostaria que os anjos do paraíso bebessem dele por toda a eternidade.
(…)
Eu me sentaria com os homens, as mulheres e Deus perto do lago de cerveja.
Estaríamos bebendo boa saúde para sempre e cada gota seria uma oração.

Um fato interessante com relação à sua biografia é que Brígida tem o mesmo nome de uma antiga deusa celta: Brighid (ou Brigid, ou Brigit), que era conhecida como a deusa tríplice do fogo, pois o fogo alimenta as forjas, esquenta os experimentos dos alquimistas e incendeia a mente dos poetas. Dessa forma, era vista também como patrona das artes e da poesia. É uma das deusas chamadas de pan-célticas, pois era cultuada por todos os diferentes povos celtas.

Alguns estudiosos sugerem que a santa católica é nada mais nada menos do que a cristianização de tal entidade. Outros defendem que a religiosa foi uma liderança druida de um templo gaélico dedicado a tal divindade que existia justamente na cidade de Kildare. E que, depois de se tornar católica, foi responsável pela conversão do espaço em um mosteiro cristão. Talvez por isso, ela é conhecida também como “Mary of the Gaels” (Mãe dos Gaélicos, em português) e a sua festa é comemorada em 1º de fevereiro, dia em que se festejava o Imbolc, comemoração dos primeiros sinais da primavera na tradição gaélica irlandesa.

É interessante notar que, assim como Brígida, a maioria desses santos cervejeiros vêm de países onde o consumo de cerveja é um traço cultural anterior ao cristianismo. E, muitas vezes, profundamente relacionado aos rituais pagãos, como vimos quando falei das cervejas de Natal e do Yule.

Dessa forma, é possível afirmar que a associação dos milagres de santos católicos ao consumo de cerveja foi uma forma encontrada pela Igreja Católica para facilitar a adoção do cristianismo por esses povos. E Santa Brígida parece ser uma síntese do sincretismo que marcou os primeiros séculos do catolicismo.



Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História.

1 Comment

  • Jamais Viana Reply

    16 de fevereiro de 2021 at 08:38

    Excelente o artigo. A conexão entre cerveja e História é fantástica! Conhecer os diferentes tipos, a relação com a Igreja nos permite mergulhar nessas histórias muitas das vezes esquecidas e silenciadas. Nunca havia ouvido falar em uma freira ou Santos católicos produtores de cerveja.

Deixe um comentário

Login

Welcome! Login in to your account

Remember me Lost your password?

Lost Password