Balcão do Profano Graal: História da cerveja no Brasil – Os imigrantes e a produção caseira
Uma vez que no dia 5 deste mês se comemorou o Dia da Cerveja Brasileira, achei oportuno me manter no tema da coluna do mês passado: os primórdios da história da cerveja no Brasil independente. Quando se fala em Brasil do século XIX, se imagina sempre que as novidades surgiam primeiro no Rio de Janeiro. Afinal de contas, o Rio era a Corte. Pelo seu porto, junto com os imigrantes, chegavam as últimas modas importadas da Europa. Seja em termos de comportamento, modos de vestir ou alimentação.
Já sabemos que a primeira fábrica de cerveja parece ter surgido no Rio de Janeiro na década de 1830. Porém, é possível que a produção cervejeira no novo país tenha começado bem antes disso e bem longe da Corte. Mais precisamente no Rio Grande do Sul, pelas mãos dos imigrantes alemães que começaram a chegar ao Brasil ainda nos primeiros anos do país independente. Entre 1824 e 1830 entraram no país entre 6 e 7 mil imigrantes procedentes de Estados alemães. A maior parte desse contingente se instalou nas províncias do Sul do país. Estabelecendo colônias agrícolas em áreas pioneiras e constituindo uma sociedade homogênea que se diferenciava muito da sociedade brasileira de então.
O marco inicial da colonização alemã foi a fundação da colônia de São Leopoldo, em 25 de julho de 1824. No local onde ficava a desativada Real Feitoria do Linho-Cânhamo, à margem esquerda do Rio dos Sinos. O lote número 1 do plano diretor do núcleo urbano da nova colônia foi dado ao pedreiro natural da Baviera Ignácio Rasch, de 34 anos. Aí, ele abriu um armazém de secos e molhados, um serviço de barcas destinado ao transporte de cargas pelo Rio dos Sinos e uma fábrica de cerveja. Na verdade, não era propriamente uma fábrica, mas uma pequena produção caseira, suficiente apenas para ser comercializada no seu próprio armazém. Infelizmente, pouco se sabe sobre Rasch e os seus negócios. Apenas que o imigrante morreu em São Leopoldo apenas 11 anos depois de chegar, em 1835.
Edgar Köb afirma que era comum, entre esses pioneiros da produção cervejeira, a comercialização por meio de “vendas-cervejarias”. Onde eles “podiam vender sua cerveja caseira, ainda que de baixa qualidade, por estarem afastadas dos principais mercados”. Afirma ainda que “se estima a presença de mais de 100 destas vendas-cervejarias durante um certo tempo no Rio Grande do Sul”. Köb provavelmente está se referindo a negócios como o de Rasch: armazéns de secos e molhados onde se produzia também cerveja. E que servia também de moradia do proprietário, uma vez que era muito comum, até o começo do século XX, que o comerciante morasse no andar superior ou, até mesmo, nos fundos do seu negócio.
Outro desses “caseiros” do Rio Grande do Sul foi George Heinrich Ritter (1822-1889), sobre o qual estamos um pouco mais bem informados. Ele chega ao Brasil em 1846, com 23 anos, com os pais e cinco irmãos. Nos anos iniciais, trabalhou como agricultor, mas depois de alguns anos abriu a primeira casa comercial de Linha Nova, onde viveu entre 1847 e 1883, ano em que retorna para a Alemanha com a esposa e os quatro mais novos dos seus 11 filhos. Mas em 1889 voltou para o Brasil, falecendo no mesmo ano em Linha Nova. Seu negócio era também uma venda-cervejaria, uma vez que Ritter tinha aprendido o ofício de cervejeiro com seu tio Roth, na Francônia, e passou a produzir cerveja no sótão de sua casa para abastecer o seu negócio. Ritter vai dar origem a uma dinastia de cervejeiros que fundarão grandes fábricas no Rio Grande do Sul, que vão chegar até meados do século XX.
Entre as primeiras levas de imigrantes alemães vieram não só agricultores e comerciantes, mas também militares mercenários para compor o exército imperial. Era comum que exércitos imperiais utilizassem o serviço de mercenários de outras nacionalidades. Durante o Primeiro Reinado (1822-1831), o Império do Brasil manteve relações bem estreitas com os estados germânicos. Seja por meio da primeira imperatriz, D. Maria Leopoldina (1797-1826), arquiduquesa da Áustria; seja por meio da segunda, D. Amélia Augusta (1812-1873), filha do Duque de Leuchtenberg (Eugenio de Beauharnais) e da Princesa da Baviera (Augusta Amalia). E D. Pedro I utilizou o serviço de muitos mercenários alemães e austríacos.
Um desses mercenários, chamado Carl Gustav Seidler, passou pela colônia de São Leopoldo em algum momento entre 1825 e 1828. E, no livro que escreveu sobre o tempo que passou no Brasil, afirma que ali “estavam em vias de se estabelecer alguns cervejeiros, que certamente aqui hão de fazer bons negócios, pois a cerveja que é importada da Inglaterra e de Hamburgo é horrivelmente cara, por causa do transporte e dos impostos constantemente crescentes”. Por isso, esses comerciantes incorporavam a produção de cerveja nos seus negócios por ser uma atividade bastante lucrativa.
Dessa forma, antes do aparecimento das primeiras indústrias, eram os “caseiros”, que fabricavam cerveja como ocupação secundária, que abasteciam o mercado local de cerveja. Pelo menos, nas áreas onde a cerveja importada não chegava ou chegava com dificuldade.
Referências bibliográficas:
CHAVES, Ricardo. Conheça a história dos fundadores de duas das maiores cervejarias do RS. GZH Almanaque. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/almanaque/noticia/2019/04/conheca-a-historia-dos-fundadores-de-duas-das-maiores-cervejarias-do-rs-cjv45f77g02il01roxtx2z1od.html
COUTINHO, Carlos Alberto Tavares. Cervejaria Ritter 1 – Cervejaria Georg Heinrich Ritter. Cervisifilia: a história das antigas cervejarias. Disponível em: A História das Antigas Cervejarias: Cervejaria Ritter 1 – Cervejaria Georg Heinrich Ritter (cervisiafilia.blogspot.com)
DUARTE, Tiaraju Salini; LOURENÇO, William Martins; FONTANA, Guilherme. Origem, ascensão e decadência das cervejarias no Estado do Rio Grande do Sul: um recorte espaço-temporal do século XIX e XX. Caminhos de Geografia. Uberlândia – MG, v. 21, n 73, março 2020, p. 368-379.
KÖB, Edgar. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 161 (409), 2000, p. 29-58.
SEYFERTH, Giralda. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 26, nº 77, Outubro de 2011, p. 47-62.
Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História
4 Comentários
CARLOS ALBERTO TAVARES COUTINHO
14 de junho de 2021 at 09:14Cada vez melhor, cada post é um banho de história do Brasil. Parabéns e obrigado por nos dar este prazer.
Christian Berner
18 de junho de 2021 at 10:00A maioria das famílias alemãs produziam suas próprias cervejas para consumo em datas festivas como o período de Kerb. A nossa receita herdada da avó materna era de spritzbier. Não se comercializava e os ingredientes eram adquiridos em farmácia.
Sergio
5 de julho de 2021 at 04:20Salve Christian,
Que informações interessantes que você traz! Nunca ouvi falar nesse estilo de cerveja: spritzbier. Você pode explicar um pouco sobre?
Um abraço