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Balcão do Profano Graal: A Revolta da Cerveja de Munique

Em novembro de 1843, um cartaz de protesto apareceu pregado numa ponte sobre o rio Isar, que corta a cidade de Munique. Sua mensagem era simples e direta: “A cerveja está muito cara.”

Na época, o governo da Baviera controlava rigorosamente a indústria cervejeira, incluindo um preço oficial que definia duas vezes por ano, chamado de Biersatz. Definido por Kim Newark Carpenter como: “um ato de equilíbrio politizado entre a necessidade de receita do governo, a flutuação dos preços dos grãos, o protecionismo para as cervejarias e os impostos especiais de consumo para projetos especiais como prédios públicos”.

Nesse período, o Ducado da Baviera era governado por Ludwig I Wittelsbach. Se você não está ligando o nome à pessoa, é aquele monarca cuja festa de casamento deu origem à Oktoberfest, em 1810.

Mas, desde 1810, a população de Munique havia dobrado para mais de 90 mil pessoas, sem contar os trabalhadores sazonais que migravam do campo. A maioria era de operários que atuavam na construção. Quando trabalhavam. Porque apesar do boom de projetos de construção públicos e privados, não havia trabalho suficiente para todos.

O serviço militar era obrigatório para os jovens, mas os soldados recebiam tão pouco que muitas vezes precisavam de empregos secundários para sobreviver. A maioria alugava um quarto coletivo com uma cama e, se desse sorte, uma janela. Os salários oscilavam em torno de 30 a 45 kreuzer por dia.

Um único Maß de cerveja (aproximadamente um litro) custava o dobro do aluguel diário, mas era vital. A cerveja era o alimento básico mais importante de uma dieta da classe baixa. Hidratava, preenchia lacunas na nutrição e ingestão calórica e ajudava a diminuir ainda mais o apetite. Os homens da classe trabalhadora bebiam, em média, dois a três Maß por dia.

Muitas vezes, pelo menos uma refeição consistia apenas em cerveja. Além disso, cervejarias e tavernas, ofereciam refúgios essenciais das precárias condições de trabalho e da sufocante vida doméstica, além de acesso a redes sociais de apoio. Como explica Brian Alberts, os trabalhadores acreditavam que tinham o direito a uma cerveja boa e saudável: “Era um elemento central do contrato social da Baviera e era obrigatório”.

Diante dessa situação, não demorou muito para cartazes como aquele da ponte começarem a aparecer em parques, praças públicas e, até mesmo, do lado de fora da residência real. Um dos quais dizia dramaticamente: “Dois kreuzer são suficientes para uma cerveja!”. Outro perguntava: “O que se espera de um regente que deixa seus soldados sofrerem com a falta de comida?”. Outros reclamavam que o rei Ludwig I “não tinha amor pelos pobres”. Um cartaz afixado perto da residência real pregava mais diretamente: “Se você quer cerveja e pão a preços acessíveis, mate o rei.”

Em 1º de maio de 1844 aconteceria o casamento da filha do Duque, Hildegarde, com uma celebração de três dias culminando em um desfile pelas ruas decoradas de Munique. Naquele ano, o aumento dos custos dos grãos pressionou o preço da cerveja para cima. Os números diziam que a cerveja deveria passar a custar seis kreuser e meio.

Quando o governo anunciou a mudança em meados de abril, começaram a circular rumores de que “algo aconteceria em 1º de maio”. Para piorar a situação, em 30 de abril, o governo sem dinheiro irritou ainda mais os soldados ao revogar o zulage, um pequeno subsídio diário dado a cada soldado para compensar a compra de cerveja. Como diz Alberts: “Em 1º de maio, Munique era uma cidade cheia de cerveja cara, milhares de trabalhadores enfurecidos e apenas 115 policiais de plantão.”

Os trabalhadores esperaram até depois do casamento de Hildegarde naquela tarde para agir. Prova de que o movimento havia sido deliberado e coordenado. No final da cerimônia, 15 soldados entraram na cervejaria Maderbräu (atual Schneider Bräuhaus). Três avisaram que pagariam apenas seis kreuzer pela cerveja. Quando o garçom exigiu a diferença, começaram a bater com os copos na mesa. Trabalhadores próximos se juntaram a eles, acusando o cervejeiro de vender cerveja fraca e ameaçando destruir o local. As batidas foram ficando mais fortes, até que mesas foram viradas e começou a confusão. Do lado de fora, já havia uma multidão reunida, que arrastou as mesas da Maderbräu para a rua e começou a jogar pedras nas janelas. Foi só o começo.

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Multidões itinerantes de centenas de pessoas, foram de cervejaria em cervejaria, quebrando todos os Maß que encontravam, jogando móveis pelas janelas e despejando barris de cerveja na rua. Os policiais pediram a ajuda dos militares, mas quando os soldados se aproximaram da multidão, os manifestantes entregaram uma cerveja a cada um e brindaram. Afinal, os soldados também faziam parte da classe trabalhadora. Os soldados ofereceram apenas assistência casual durante os tumultos.

A agitação prosseguiu noite adentro, quando uma multidão de 2 mil pessoas marchou para a residência e o teatro reais, onde Ludwig, funcionários do governo e aristocratas estavam participando das festividades do casamento. Alguns revoltosos fizeram discursos enquanto outros jogavam pedras e diziam insultos. Gritavam que Ludwig os havia esquecido, desperdiçado dinheiro em prédios públicos e amantes e que, ainda por cima, não fizera nada para incluí-los na festa de casamento de Hildegarde. “Onde estavam os fogos de artifício e outros espetáculos públicos?”, perguntavam.

Os tumultos prosseguiram pelos dois dias seguintes, com menor intensidade, apesar dos cervejeiros de Munique concordarem unanimemente em baixar o preço da cerveja para seis kreuser. Mas já então os trabalhadores exigiam o Maß por 5 kreuzer. O governo havia enviado todos os soldados de folga para seus quartéis, e com uma resposta mais preparada e coordenada, conseguiu restaurar a ordem mais facilmente. Duas semanas depois, o governo recompensaria cada soldado que ajudou a reprimir os distúrbios com um bônus de sete kreuzer. Como disse Alberts: “basicamente, Ludwig comprou uma cerveja para cada um”.

Como explica Carpenter, os governantes de Munique se apressaram a atribuir o motim a algo simples, como meio kreuser. Porém, o movimento refletiu queixas específicas e deliberadas. Os revoltosos deixaram as casas particulares em paz e, apesar de todos os danos infligidos às cervejarias, nunca destruíram o equipamento de fabricação de cerveja. Seus alvos (copos, móveis, barris e janelas) ofereciam sinais simbólicos de que o pacto bávaro entre cervejeiro e bebedor havia sido violado.

O simbolismo desses três dias foi muito mais profundo do que apenas o preço da cerveja e reverberou por Munique e pela Baviera pelos anos seguintes. Antes do final de junho, pelo menos 25 distúrbios análogos da classe trabalhadora ocorreram em toda a Baviera. E naquele ano a Oktoberfest quase foi cancelada por razões de segurança.

Depois, por anos, o governo anunciou cada novo Biersatz com a respiração suspensa. Pouco depois, o zulage também foi restaurado. Os acontecimentos mereceram até um comentário de Friedrich Engels no jornal em 25 de maio daquele ano, quando ele escreveu: “Se o povo agora sabe que eles podem amedrontar o governo nos assuntos fiscais, eles logo aprenderão que será fácil amedrontá-los em assuntos mais sérios”. Quatro anos depois, Ludwig I seria deposto por uma revolução.


Referências bibliográfricas:

ALBERTS, Brian. “Streets as Stages” – The Munich Beer Riots of 1844. Good Beer Hunting. 15 de julho de 2020. Acessível em: “Streets as Stages” — The Munich Beer Riots of 1844 — Good Beer Hunting

Beer riots in Bavaria. Wikipedia. Acessível em: Beer riots in Bavaria – Wikipedia

CARPENTER, Kim Newark. “Sechs Kreuzer sind genug fuer ein Bier!”: The Munich beer riot of 1844: Social protest and public disorder in mid-19th century Bavaria. Tese de Doutorado. Georgetown University School of Arts and Sciences. Washington D.C., 1998. (“Sechs Kreuzer sind genug fuer ein Bier!”: The Munich beer riot of 1844: Social protest and public disorder in mid-19th century Bavaria – ProQuest)

ENGELS, F. Revolta da cerveja na Bavária. The Northern Star. nº 341, 25/05/1844. Disponível em: Revolta da Cerveja na Bavária (marxists.org)


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História.

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