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Teresa Cristina fala sobre necropolítica e relação entre samba, cerveja, mulher e Ogum

Para Teresa Cristina, o artista se calar diante de absurdos políticos seria um “crime”

O artista é um importante ator político. Essa visão se reflete nos posicionamentos de Teresa Cristina, importante representante do samba brasileiro, apresentados na live semanal do Guia. Na entrevista realizada nesta quarta-feira, ela comentou sobre a carreira, o sucesso das suas interações digitais diárias, um dos marcos da quarentena, e o primeiro patrocínio da carreira.

Para a cantora, calar-se diante de absurdos políticos, como a sugestão de invadir hospitais para verificar se leitos estão ocupados por pacientes com coronavírus ou ignorar recomendações de autoridades sanitárias, seria um “crime”.

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Apesar disso, Teresa Cristina prefere não enxergar um cenário desolador no Brasil, apontando o que a cultura nacional segue produzindo. Um dos maiores exemplos disso é a a live diária em que ela dá espaço para artistas pouco conhecidos, como uma resposta de “afeto e amor à necropolítica”.

O sucesso das transmissões levou Teresa Cristina, uma mulher negra, a conseguir o primeiro patrocínio da sua carreira, da cervejaria Original, que apoiará uma live da cantora marcada para o próximo sábado – já havia realizada outra, em 30 de maio.

Na entrevista ao Guia, Teresa Cristina também comenta sobre a relação entre cerveja e samba, a sua formação musical, a participação no processo de revitalização da Lapa, no Rio, e como acredita ter construído o seu sucesso dando um passo de cada vez.

Confira, neste link, a live na íntegra. E, abaixo, um resumo da entrevista.

Influência de Candeia
A partir de uma pesquisa sobre o Candeia, conheci o Wilson Moreira, a Velha Guarda da Portela, conheci Monarco, Paulinho da Viola… Comecei a cantar na Lapa em 1998, cantando Candeia. Era um visionário, um ativista social e político dentro do samba. Alguém que abriu caminhos para eu aceitar e falar da minha negritude.

A participação no renascimento da Lapa
A Lapa era um lugar boêmio nos anos 30 e 40, frequentado por Francisco Alves, Cartola e outros nomes. No fim dos anos 90, a rua do Semente (bar na Lapa) era quase deserta, tinha muita criança cheirando cola. Com a frequência, o quadro foi mudando, se tornou uma rua atrativa. Tinha eu cantando samba no bar, a padaria aproveitava o som e colocava mesas na calçada. E também tinha forró, concerto de harpa, a galera do metal na calçada, sósias de cantores bregas e sertanejos. Era uma confusão de gente.

A influência da Lapa em sua formação cultural
Eu entendi que as pessoas estavam cansadas das músicas da rádio e da TV. A Cristina Buarque ajudou enriquecendo o repertório, nos dando gravações de Zé Keti, da turma da Portela, de cantores do rádio. Eram songbooks antes mesmo de eles existirem. Tínhamos um público atrás de música que não era imposta. Me fez bem, para pesquisar, ir atrás de repertório.

Relação entre samba e cerveja
A cerveja é companheira do samba. Em uma live, a Mãe Dora explicou que Tia Ciata, que trouxe o samba para o Rio, quando ela se fixou na Praça XI, fez um assentamento para Oxu e Ogum. E a bebida de Ogum é a cerveja. Existe algum segredo entre o samba e a cerveja. E entre o samba e a cerveja, existe o sambista, que consome a cerveja. É um combustível.

A cerveja na cultura brasileira
É a bebida perfeita, é gelada, dá uma animação, como o samba, é um motorzinho de felicidade. É uma celebração, motivo para encontrar um amigo. “Vamos tomar uma cerveja”, “vamos tomar uma saideira”, “com fulano eu não bebo”. São expressões que significam outras coisas, e têm outras interpretações.

O sucesso da sua live
As coisas que faço começam pequenas. No Semente, na primeira noite, tinha 20 pessoas. E depois ficava gente na rua, porque não cabia lá dentro. As lives, comecei com 80, 120, 300 pessoas e foi aumentando. A gente vive em um país onde 2% são milionários, e a base é humilde e trabalhadora. Mas há um senso de que tudo precisa ser gigante, especialmente na arte. Conseguir observar o crescimento do meu trabalho é muito importante. É com o crescimento gradativo que eu aprendo e entendo o que é meu trabalho.

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A dificudade para conseguir patrocínio de uma marca de cerveja
Quando comecei a cantar na Lapa, não bebia. Vários sambistas eram patrocinados por cervejas, e eu achava que não era patrocinada por isso. Mas o Dudu Nobre era patrocinado e não bebia. (…) Depois, eu voltei a beber. Foi um reencontro com um amor antigo. Quando começaram as lives, comecei a beber nelas. E virou um combustível. Eu faço live todo dia, bebo todo dia, mas só durante a live. E quando vejo, bebi seis cervejas. Eu consumia muito uma marca. As pessoas provocavam a marca, durante uns dois meses, para que me patrocinasse. Mas a marca, para ela, eu não era uma prioridade. Fiquei chateada, parei de mostrar. (…) Depois de um tempo, a Original patrocinou a minha primeira live. E não é só o patrocínio, é o carinho. A primeira live foi incrível e agora vou fazer a segunda. A gente tem de retribuir o amor que a gente recebe.

Leia também – Sambas, conversas e autenticidade: Como Teresa Cristina atraiu o patrocínio de uma cervejaria

A dificuldade para obter o 1º patrocínio
A mulher negra no Brasil não pode errar, precisa ser perfeita. Se erra, ela é cobrada. E temos de agarrar a oportunidade. Para ser bem-sucedida, você precisa estar sempre pronta. (…) A gente está sempre no final da fila, às vezes nem no final. Eu bati na porta de empresas sobre meus shows do Candeia, do autoral, do DVD. E a resposta era “dessa vez, não. Quem sabe da próxima”. Então pensava: “Não é o que eu faço. Sou eu”. Foi preciso ter cabeça firme, e graças a Deus eu tenho, para não me achar o problema.

A cultura brasileira em meio à crise
As engrenagens estão em movimento, o Brasil não é mais o mesmo, mesmo que estejamos em um cenário inimaginável, de não ter um ministro da Saúde há dois meses em uma pandemia. Ao mesmo tempo, porém, o que está uma m…, sempre esteve, só que agora está cheirando. Temos alicerce e base para nos reerguer. A criação cultural do Brasil continua linda e produzindo. A gente não pode achar que tudo é um governo que a gente nem sabe até quando vai durar. (…) O samba atravessa dois séculos porque tem base. E quem está no poder, não deu certo em lugar nenhum do mundo, não vinga em lugar nenhum. Estamos vivos, produzindo, compondo, tomando nossa cerveja. E podemos ficar bêbados em casa na quarentena.

O posicionamento político dos artistas
Eu entendo o medo de se posicionar e ter uma imagem vinculada a algum político e aí prefere-se manter a neutralidade. Temos experts nisso. Mas hoje temos o enfrentamento da política da morte, tem a Covid-19 e tem o covarde, dando as costas para morte, incentivando a invasão de hospital, com gente morrendo lá dentro. Não vejo minha postura como a favor de um partido, mas a favor da vida. A minha, da família, do meu estado: o Rio de Janeiro tem mais mortes do que a China. Os dirigentes querem abrir academia, abrir escola, liberar aglomeração em igreja evangélica, desorientando a população, ignorando a OMS, a base científica. Não se pode botar isso acima da ciência. (…) A arte existe para modificar a realidade, é uma interferência. Se eu não grito a ausência de um ministro da Saúde, eu estou concordando com isso. Se não reclamo de alguém que manda invadir hospitais, eu concordo com isso.  (…) Se eu não usar a minha ferramenta para isso, não tem por que eu ter uma live. O silêncio hoje é criminoso, não se aplica, é inconcebível. O artista, se ficar quieto, não só não ajuda a quem precisa, como está colaborando com atitudes anti-vida. Não consigo me imaginar sem falar dessas coisas.

As razões para a mulher não ser associada à cerveja
Quando a mulher repete um gesto masculino, ela é considerada vulgar. Os homens se vangloriam de seduzir e se relacionar. O homem pode beber dez cervejas sozinho no botequim. E isso é vangloriado. Qual é o nome da mulher que faz isso? É uma questão de sexo. A mulher é piranha e puta na mesma situação. A mulher não pode nem amamentar em público. Tomara que as lives que estou fazendo incentivem mais mulheres a entrar no botequim. Ela continuará sendo a mesma mulher, mas talvez mais feliz.

A ancestralidade e o apoio a artistas pouco conhecidos
A ancestralidade são as histórias que se repetem para se aprimorar. Se eu estou aqui na Terra, tenho dívidas a pagar. Então preciso ser melhor. Quando olhamos para o outro e enxergamos nele o nosso Deus, e não em um objeto, quando enxergamos o divino no outro, a gente também se torna divino. Criamos um elo que não para. É bom ser ajudado, então também é bom ajudar. (…) Eu sei o que é não ter oportunidade. É muito bom dar janela para alguém. A gente cria um círculo de afetos, e só com o afeto e o amor a gente pode sobreviver contra a necropolítica.

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