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Uma cerveja antes do almoço: 30 anos do manifesto que deu voz ao multiculturalismo

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Líder do movimento manguebeat e da Nação Zumbi, Chico Science misturou elementos locais com mundiais em suas criações

“Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife”. Foi com essa ideia, escrita em um manifesto e colocada em prática por vários artistas, que o manguebeat, um dos mais importantes movimentos culturais recentes, começou a marcar história no Brasil reverberando a mistura do regionalismo com o que se fazia no mundo ao mesmo tempo em que realizava críticas sociais à situação do Recife, com a pobreza escancarada pelas periferias da cidade e de sua região metropolitana.

O trecho acima compõe o Manifesto Caranguejo com Cérebro, escrito por Fred Zero Quatro, jornalista e vocalista do Mundo Livre S/A, uma das bandas centrais do manguebeat. O texto, que completou 30 anos em julho de 2022, representou a apresentação de um movimento que começou a eclodir na capital pernambucana no começo dos anos 1990 e trouxe reflexos culturais e sociais, indo muito além do Recife – e tornando-se alvo de homenagens de cervejarias.

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A cidade deslobotomizada e sem bateria citada por Zero Quatro refletia as mudanças do centro cultural brasileiro, que se voltou, desde a segunda metade do século XIX, para o Sudeste. Perderam sua força especialmente política e econômica, assim, Recife e outras localidades históricas para a construção da noção de país.

Em muitos momentos presas a regionalismos e estereótipos, as manifestações culturais deram um salto de representatividade com o movimento manguebeat. Com a presença de músicos e artistas de outras áreas, uniu as características locais com as novidades que se produziam pelo mundo, ao “erguer suas antenas” e propor a mistura de elementos como maracatu e hip hop. Era um marco do multiculturalismo, mesmo que, àquela época, o termo ainda nem estivesse popularizado.

É o que destaca Larissa Fostinone Locoselli, hoje docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu (PR), e autora da tese de doutorado “De rocks, murgas e maracatus: o fazer musical e a construção do ‘local’ sob o neoliberalismo latino-americano da virada de século. Um estudo comparativo das bandas Bersuit Vergarabat (Argentina) e Chico Science & Nação Zumbi (Brasil)”.

“O interessante com relação ao manguebeat é que, ao menos em suas manifestações mais conhecidas nacionalmente, esta conexão com o ‘regional’ continuou sendo um elemento central. A diferença esteve, muito mais, em como ela era reivindicada. A imagem-símbolo da antena parabólica enfiada na lama é muito representativa desta mudança de chave. O caráter tradicionalista da ‘preservação’ da cultura ‘regional’ dá lugar à expressão da necessidade da ‘região’ se conectar ao ‘mundo’”, analisa a professora.

O movimento manguebeat, assim, reforçou a conexão da cultura local com o que se fazia pelo mundo em busca de uma sociedade mais diversa em suas manifestações culturais. E, surgido em um cenário de uma cidade então decadente financeiramente, ele se voltou, também, para a denúncia social das desigualdades.

Ao mesmo tempo, não deixou de olhar para o cenário econômico e político global, pois os anos 1990 são um dos marcos históricos de adoções de políticas neoliberais por diversos governos centrais, com a defesa do estado mínimo. O que, em muitos casos, se transformava em redução do investimento nas necessárias políticas sociais, ampliando desigualdades.

Na produção do início dos anos 1990 as diversas manifestações do manguebeat se voltaram muito fortemente à representação e discussão em torno da desigualdade social. É interessante notar como este é um fator que, apesar de seguir presente ao longo das décadas, tem uma configuração muito específica naquela primeira cena, dos anos 1990, o que talvez se justifique pelo próprio contexto de maior choque neoliberal naquele momento

Larissa Locoselli, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana

Essa expressão social fica clara em meio à fusão de sonoridades do mais icônico disco das bandas representativas do movimento, o “Da Lama ao Caos”, de Chico Science & Nação Zumbi, que foi eleito recentemente o melhor álbum brasileiro dos últimos 40 anos, em enquete promovida pelo jornal O Globo.

“Este álbum realiza uma crônica apuradíssima da desigualdade social que assolava Recife no início dos anos 1990, o que apelava a uma percepção crescente dos efeitos do neoliberalismo na vida social e que era comum ao país inteiro”, lembra a professora da Unila.

A continuidade, 30 anos depois
Com manifestações em diversos campos da cultura, o manguebeat ficou mais conhecido fora do território pernambucano, nos anos 1990, pelas músicas de Chico Science & Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A. E pontificou dois tipos de legados: um externo, ao recolocar Pernambuco na diversa rota cultural brasileira, e um interno, ao resgatar tradições locais, como o maracatu.

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Não à toa, o movimento tem herdeiros com espaço consolidado na música brasileira até hoje, como Cordel do Fogo Encantado e Mombojó, além da continuidade de nomes surgidos quando o movimento eclodiu, como Otto, Eddie e mesmo a Nação Zumbi.

“As agrupações do início dos anos 1990 tiveram realmente um papel muito importante na recolocação do estado de Pernambuco na cena cultural brasileira. Há estudos que indicam também o seu papel, principalmente de Chico Science & Nação Zumbi, na reconfiguração da cultura do maracatu nação, na própria região e para além dela”, destaca Larissa.

Ao escrever o manifesto “fundador” do movimento manguebeat, Zero Quatro referendou uma visão que o “estrangeiro” tinha do Recife, como elo representativo do Nordeste, de miséria e estagnação. Uma opinião que não mudou tanto assim, na sociedade, 30 anos depois.

Região que mais se desenvolveu socioeconomicamente no Brasil na primeira década deste século, o Nordeste, afinal, continua sendo visto por uma parcela da população sem a percepção dos efeitos dos avanços engendrados por governos progressistas, apagando as suas diversidades. Não se enxerga, assim, a autoestima surgida do acesso a bens básicos. A mesma autoestima, aliás, que o movimento manguebeat deu aos artistas locais quando suas vozes passaram a ser ouvidas além de Pernambuco.

Muitos dos avanços e das disputas políticas que os governos mais progressistas que o país teve nas primeiras décadas do século XX terminou incidindo diretamente sobre a pugna, simbólica e material, ‘Nordeste’ versus ‘Sudeste’. A reação conservadora a estes avanços vem, justamente, corroborando esta percepção, sendo cada vez mais mobilizados os pré-construídos sobre ‘o nordestino’ e cada vez mais acentuada a existência de uma polarização política entre ‘Nordeste’ e ‘Sudeste

Larissa Locoselli, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana

E a cerveja…
O refluxo provocado pelo manguebeat vai se encontrar com a cerveja, e não apenas com aquela consumida por Chico Science “antes do almoço para ficar pensando melhor”, como descreve o já clássico verso de A Praieira, de Chico Science & Nação Zumbi. Trata-se da construção de um diálogo ambíguo, como aponta Larissa.

“Para mim este diálogo está exatamente neste caráter popular, no verso que fala aos hábitos mais arraigados da classe trabalhadora. A conexão do manguebeat com o popular em termos sociais é muito complexa, pois há movimentos de aproximação e distanciamento, como é próprio de qualquer criação da classe média e sua ambígua identificação com a classe trabalhadora. O verso de ‘A Praieira’ me parece muito representativo disso: apela ao mais trivial do cotidiano, dos hábitos populares, ao mesmo tempo em que parece querer estranhá-los”, analisa a professora.

Para além de um dos hábitos mais arraigados entre os trabalhadores brasileiros, o manguebeat também está inserido no entorno das bebidas, seja em homenagens ou no processo produtivo, que une o externo às características locais, como defendido por Zero Quatro no Manifesto Caranguejo com Cérebro.

Esse diálogo entre cerveja e manguebeat está expresso, por exemplo, em um célebre rótulo do mercado brasileiro, o Antes do Almoço, criado pela carioca 2cabeças. “A frase ‘antes do almoço’ é muito forte no imaginário coletivo e se encaixa perfeitamente com a ideia da cerveja, que era daquelas para beber o dia inteiro, despreocupado. Tem uma mistura de um estilo norte-americano, mas com uma leveza e refrescância que combina demais com o Brasil”, aponta Bernardo Graça Couto, sócio-fundador da 2cabeças, que usa a expressão eternizada em “A Praieira” em uma American Blonde Ale.

“A inspiração da Antes do Almoço surgiu de uma hora para outra. Eu estava há meses buscando o nome para uma cerveja nova, que seria uma American Blonde Ale. Um belo dia, voltando da praia após uma manhã de surfe, eu estava dirigindo e tocou ‘A Praieira’ no som do carro. E foi como se os números da Matrix começassem a cair na minha frente para batizar a nova cerveja”, conta o sócio da cervejaria.

Sediada no próprio Recife, por sua vez, a Ekäut homenageou o manguebeat na receita e, sobretudo, no rótulo da Hopbeat, uma New England IPA que lembra o movimento em seu nome, como afirma Raphael Vasconcelos, sommelier de cervejas e responsável pelo marketing e canais especiais da marca.

“Somos uma cervejaria regional e damos muito valor à cultura regional do Nordeste. Principalmente de Pernambuco, nossa praça-mãe e onde fica a Ekäut Cervejaria. O manguebeat faz parte da nossa cultura e temos um tremendo orgulho dessa repercussão e reconhecimento. Faz parte do nosso DNA utilizar estilos clássicos cervejeiros com uma ‘pegada’ de frutas e ingredientes regionais. Ouvimos e curtimos as músicas de Chico Science, Nação Zumbi e Mundo Livre S/A desde crianças. Chico Science & Nação Zumbi não podem faltar na nossa playlist do Spotify. Duda Beat tem entrado nessa lista recentemente também”, detalha Raphael. “[A receita da cerveja] É uma parceria perfeita para escutar um Maracatu Elétrico nas ruas do Recife Antigo.”

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