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Balcão do Profano Graal: A revolução das Pilsners


O século XIX foi marcado por diversas revoluções. Ao longo do século ocorreram várias independências, incluindo a do Brasil, em 1822; as Revoluções Liberais de 1830 e 1848; as guerras de unificação nacional da Itália (entre 1848 e 1861) e da Alemanha (concluída em 1871), além de outras menores. Entre essas, uma quase desconhecida: a Revolta da Cerveja ocorrida na cidade de Pilsen em 1838. Acontecimento muito importante para a história da cerveja, porque vai dar origem ao mais popular estilo que existe até hoje. E, aproveitando que o mês de novembro marca o aparecimento da primeira cerveja desse estilo, vamos contar um pouco dessa história.

Pilsner, em alemão significa “natural de Pilsen”. Em 1295, o rei Venceslau II (1278–1305), do então Reino da Boêmia, fundou a nova cidade de Pilsen (ou Plzen, em checo), na confluência dos rios Radbuza, Mze, Úslava e Úhlava, movendo-a a cerca de 10 quilômetros do seu local original (datado do século X).

Abaixo da cidade existe um labirinto de porões, túneis e nascentes. Este mundo subterrâneo proporcionou condições ideais para os cidadãos guardarem alimentos, abrigarem-se em tempos de cerco e fabricarem e armazenarem cerveja.

O rei deu a todos os habitantes da cidade o direito de preparar e vender cerveja em suas casas, um privilégio que em toda a Europa Central era geralmente reservado aos nobres. E são de 1307 os primeiros documentos escritos que atestam a presença de cervejarias nesse território. Os boêmios estabeleceram guildas e deram à produção de cerveja um lugar central na sociedade. A maior prova disso é o fato de que o primeiro manual de fabricação de cerveja impresso no mundo foi o De Cervisia, do boêmio Tadeas Hajeck, de 1588.

Em meados do século XIX, os cidadãos de Pilsen estavam bastante insatisfeitos com a cerveja produzida pelas seis cervejarias existentes na cidade. Insatisfação que, segundo Roger Protz, acabou culminando, em 1838, em uma manifestação em que proprietários de taverna derramaram 36 barris das cervejarias locais em frente à Prefeitura, na praça central da cidade. Outros autores afirmam que foi o próprio conselho da cidade que derramou os barris. Essa Revolta da Cerveja foi o ponto de virada para a produção de cerveja em Pilsen.

Empresários locais, donos de tavernas e os administradores da cidade se uniram para levantar fundos para a construção de uma nova cervejaria, criando assim a Bürgerliches Brauhaus (ou a Cervejaria dos Cidadãos), em 1839, cujo prédio foi projetado pelo renomado arquiteto Martin Stelzer (1815-1894). Para comandá-la, foi contratado o mestre-cervejeiro bávaro Josef Groll (1813-1887). Entre 5 de outubro e 11 de novembro de 1842, Groll produziu o primeiro lote da nova cerveja.

A maioria das cervejas produzidas na Boêmia em meados do século XIX era de alta fermentação (Ales), de cor escura e turvas. Mas Groll foi instruído a recriar uma cerveja Lager em estilo bávaro. Para isso, segundo Pete Brown, ele recrutou assistentes de cervejeiro e fabricantes de barris da Baviera e trouxe com ele uma levedura Lager bávara contrabandeada através da fronteira. Utilizando a água “mole” de Pilsen (com baixo conteúdo mineral), o lúpulo Saaz da Boêmia (caracterizado por um baixo amargor) e a cevada da Morávia, Groll criou uma “bebida dourada com espessa espuma branca como a neve” (OLIVER, 2012, p. 846).

Mas, além de revoluções políticas e sociais, o século XIX foi também um século de revoluções tecnológicas. E a cor da nova cerveja de Groll era fruto dessas revoluções. Foi resultado do uso de maltes mais claros, obtidos por meio de um processo mais controlado de torra do malte. Em 1818, o engenheiro e inventor britânico Daniel Wheeler patenteou um Novo ou Aprimorado Método de Secagem e Preparação do Malte.

Wheeler se inspirou nas torrefadoras de café para criar um tambor giratório onde o malte não ficaria exposto diretamente ao fogo do forno ou à fumaça, ao contrário do que acontecia nos fornos tradicionais. O malte também poderia ser seco de forma mais homogênea e os produtores poderiam ajustar a temperatura e a duração dos processos de secagem e, assim, controlar a cor e o sabor do produto acabado, do malte claro suavemente tostado até o malte preto severamente torrado. A nova e vasta gama de maltes levou à criação de vários novos estilos de cerveja.

Porém, segundo Pete Brown, seria incorreto se referir à Pilsner de Groll como a primeira cerveja dourada do mundo. Porque os cervejeiros ingleses de Pale Ales teriam sido os pioneiros no uso de maltes claros (pale) décadas antes e os bávaros teriam admitido livremente que apenas roubaram o conhecimento para produzir as suas cervejas. Para além dessa polêmica, o fato é que a cerveja de coloração dourada combinou perfeitamente com outro fruto das revoluções industriais do século XIX: a indústria de vidros. Ao longo daquele século, a região da Boêmia se tornou uma grande produtora de cristais, mundialmente famosos e que adornavam os palácios das principais monarquias europeias.

Algo que não dá margem para polêmicas é o fato de que a cerveja de Groll deu origem ao estilo Pilsner. Porém, ressalta Pete Brown que, “talvez como resultado de seu prazer embriagado”, os burgueses de Pilsen não registraram a marca Pilsner Bier até 1859, época em que já havia muitas outras cervejas no mercado que se referiam a si mesmas como de estilo Pilsner. E apenas em 1898 a Bürgerliches Brauhaus registrou a marca Pilsner Urquell, em alemão, ou Plzensky Prazdroj, em checo (que significa Pilsner Original), alterando o nome da cervejaria.

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Devido à popularidade do estilo, muitas outras cervejas foram criadas para disputar o mercado com as, agora, Bohemian Pilsner. Afirma Pete Brown que 95% do volume global de cerveja é composto por imitações da Pilsner original. Mas o nome Pilsner é hoje marca registrada das cervejarias da cidade de Pilsen.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMARAL, Cláudia Alvares. Vidro da Boêmia nas coleções do Palácio Nacional da Ajuda. Artigos em Linha. Palácio Nacional da Ajuda. Nº 2, novembro de 2010.

BROWN, Pete. Groll, Josef (1813-1887). In: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 555.

BROWN, Pete. The “Original Pilsner”. In: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 846-847.

FUNK, Holger. Tadeas Hajek De Cervisia: a sixteenth century treatise on the brewing of beer with hops. Brewery History. The Brewery History Society. Nº 162, 2015, p. 41-55.

HAMPSON, Tim. Pilsen (Plzen). In: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 844-845.

KAYE, Nick. Wheeler, Daniel. In: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 1076-1077.

OLIVER, Garret. Czech Republic. In: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 396-398.

PROTZ, Roger. Pilsner Urquell. In: OLIVER, Garret (org.). The Oxford Companion to Beer. Oxford Universitary Press: New York, 2012, p. 848-849.

Verbete “Pilsner”. Wikipedia. Disponível em: Pilsner – Wikipedia


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História

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