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Balcão do Profano Graal: A lei alemã da pureza da cerveja – uma história mal compreendida


Hoje se comemora o Dia da Cerveja Alemã. Celebração que remete à promulgação da Lei de Pureza da Cerveja pelo Duque da Baviera Guilherme IV (1508-1550), em 23 de abril de 1516. Todo cervejeiro já ouviu falar da famosa Reinheitsgebot, que determinava que os únicos ingredientes que deveriam ser utilizados para a fabricação da cerveja deveriam ser lúpulo, cevada e água (a ação da levedura na fermentação alcoólica só vai ser descoberta pela ciência em 1835). Mas essa lei é com muita frequência mal interpretada e mal compreendida. Então, vamos tentar entender um pouco melhor seu contexto, motivações e efeitos.

Para começar, a lei de 1516 não foi a primeira a determinar os ingredientes obrigatórios da cerveja. Já em 1447 o Conselho Municipal de Munique recomendou às cervejarias da cidade a usar nas suas receitas apenas água, cevada e lúpulo, como forma de se livrar dos impostos cobrados pelos monastérios sobre o monopólio do gruit (os gruitrecht, existentes desde o século IX). Já me referi a esse fato no texto sobre a história do lúpulo publicado aqui, no Guia, alguns meses atrás. Quarenta anos depois (em 30 de novembro de 1487) o duque Albrecht IV (1463-1508) transforma a recomendação do conselho municipal em obrigação, dando origem ao primeiro edito de pureza da cerveja. Essa determinação parece ter servido de incentivo à disseminação do uso do lúpulo em substituição ao gruit no Sacro Império Romano-Germânico (962-1806).

A famosa lei de 1516, promulgada por Guilherme IV, seu filho e sucessor no ducado, nada mais fez do que estender essa obrigatoriedade a todo o Ducado da Baviera. Lembrem-se de que a Alemanha não existia como estado unificado até 1871. Dessa forma, apesar de ser conhecida hoje como Lei de Pureza da Cerveja Alemã ou Lei Alemã de Pureza da Cerveja, ela se estendeu a toda a Alemanha apenas em 1906. Nessa ocasião também, o termo “cevada” foi substituído por “malte” e foi incluído o quarto ingrediente obrigatório da cerveja: o fermento. Assim, a determinação dos ingredientes que deveriam ser utilizados para fabricação da cerveja não era sequer o ponto principal da lei de 1516, porque só repetia o que já havia sido determinado desde o século anterior, mas sim a fixação de preços e multas para a sua comercialização:

Do Dia de São Miguel (29 de setembro) ao dia de São Jorge (23 de abril), o preço para um mass [antiga unidade de medida austro-bávara que equivale a 1,069l] ou um kopf [recipiente em forma de tigela, utilizado para líquidos], não pode exceder o valor do pfennig de Munique.

Do Dia de São Jorge (23 de abril) ao dia de São Miguel (29 de setembro), o mass não será vendido por mais de dois pfennig do mesmo valor, e o kopf por não mais de três Heller (Heller geralmente é meio pfennig). Se isto não for cumprido, a punição indicada abaixo será administrada.

Se qualquer cervejeiro fermentar ou tiver outra cerveja, que não a cerveja do verão, não deve vendê-la por mais de um pfennig por mass. Além disso, nós desejamos enfatizar que no futuro em todas as cidades, nos mercados e no país, os únicos ingredientes usados para fabricação da cerveja devem ser cevada, lúpulo e água. Qualquer um que negligenciar, desrespeitar ou transgredir estas determinações, será punido pelas autoridades da corte que confiscarão tais barris de cerveja, sem falta.

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Se, entretanto, um comerciante no campo, na cidade ou nos mercados comprar dois ou três barris da cerveja (que contém 60 mass) para revendê-los ao camponês comum, apenas para este será permitido acrescentar mais um Heller por kopf, do que o mencionado acima. Além disso, caso aconteça escassez e subsequente aumento do preço da cevada (considerando também que os tempos da colheita diferem, devido à localização das plantações), nós, o Ducado da Baviera, teremos o direito de fazer apreensões para o bem de todos os interessados.

A interpretação mais difundida para as motivações dessa lei se refere a uma certa escassez da produção de trigo na região à época. Que, a partir de então, ficaria reservada para a produção de pão. Porém, as cervejas de trigo (tradicionais na região) nunca deixaram de ser produzidas e nem consumidas. Mas a sua produção era um direito exclusivo da casa reinante de Wittelsbach. Outros nobres e monastérios só poderiam produzi-las com licença concedida pelos duques. O primeiro a receber essa concessão foi o Barão Hans IV von Degenberg, em 1548. Em 1602, quando o último herdeiro da Casa von Degenberg, Sigismund, morreu sem deixar herdeiros, o privilégio voltou para as mãos do Duque Maximilian I de Wittelsbach (1597-1623), bisneto de Guilherme IV. Em 1872, o Duque Ludwig II (1864-1886) concedeu a um cervejeiro chamado Georg Schneider não apenas a permissão para produção, mas também o aluguel do estabelecimento estatal dedicado à fabricação desse tipo de cervejas em Munique (a Weisses Brauhaus). Mas esse já é um assunto para outro momento.

Dessa forma, ao lado das motivações relacionadas a questões de saúde pública, garantindo a qualidade da cerveja produzida, as leis de pureza tinham também motivações econômicas, na regulamentação de preços e multas para a sua produção e comercialização; e motivações políticas, combatendo o monopólio do uso do gruit pela Igreja Católica e reduzindo o seu poder na Baviera, já então sob a influência da Reforma Protestante (iniciada por Martinho Lutero naquele mesmo ano de 1516).

Por fim, os cervejeiros atuais se perguntam se essa limitação a três ingredientes básicos teria sido benéfica ou maléfica para a formação da Escola Cervejeira Alemã. Se perguntam se essa limitação teria engessado ou estimulado a criatividade dos cervejeiros alemães. As duas interpretações têm seus defensores e seus argumentos. E é uma discussão que está longe de acabar. Na década de 1980, por pressão da União Europeia, a lei de pureza deixou de ser aplicada sobre cervejas voltadas para a exportação. Mas o respeito pelas determinações da Reinheitsgebot é ainda hoje utilizado como marketing e sinônimo de qualidade por cervejarias dentro e fora da Alemanha.


Sérgio Barra é carioca, historiador, sommelier e administra o perfil Profano Graal no Instagram e no Facebook, onde debate a cerveja e a História

3 Comentários

  • JOAO FERNANDO SACILOTTO Reply

    23 de abril de 2021 at 17:26

    Olá Sergio !!! Gostei do seu artigo. Além de providencial, pela data, didático! ( gostaria que a sra. Cora Ronai pudesse informar-se com vc ).
    ( veja – a infeliz – coluna dela no O Globo de 08/04 ) Saudações Cervejeiras.

    • Sergio Reply

      16 de maio de 2021 at 08:06

      Olá João,
      Só agora vi sua mensagem. Obrigado pelo feedback.
      Não vi o texto da Cora Ronai. Vou procurar.
      Abraços,
      Sérgio

  • Alexandre Neto da Silva Reply

    23 de março de 2022 at 17:50

    Opa, tudo bem? Gente, existe problema realizar alguma citação direta desse texto para meu tcc do meu curso de alimentos?
    Estou realizando um tcc na área de cerveja.

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