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Conheça importante sítio para a história humana sob risco por fábrica da Heineken

No sítio arqueológico Lapa Vermelha foi encontrado o humano mais antigo das Américas, apelidado de Luzia

Estudar as sociedades humanas a partir de vestígios e objetos para entender a sua evolução, a sua cultura e o seu modo de vida. É esse o conceito básico da arqueologia, ciência que está, agora, com um “sítio importante para explicar o povoamento da Terra” ameaçado pelos planos de construção de uma obra do Grupo Heineken nos arredores de Pedro Leopoldo, na região metropolitana de Belo Horizonte. No momento, a construção está embargada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e se tornou alvo de inquérito do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) para avaliar o seu impacto.

A afirmação sobre a importância do sítio arqueológico Lapa Vermelha é de Andrei Isnardis, professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E não é à toa. Afinal, foi em uma das suas cavernas e grutas, a Lapa Vermelha IV, onde foi encontrado o humano mais antigo das Américas, apelidado de Luzia, com idade estimada de 13 mil anos.

Leia também – MP abre inquérito para apurar impacto de obra de fábrica da Heineken em MG

Além de todo o chamariz provocado pela descoberta de Luzia, o Lapa Vermelha possui outros importantes registros arqueológicos, como pinturas rupestres. Além disso, a região não se resume somente a esse sítio. Está inserida na Área de Proteção Ambiental Carste de Lagoa Santa, de grande importância para a arqueologia, como explica Maria Jacqueline Rodet, professora de arqueologia da UFMG.

“Os sítios arqueológicos da APA Cárstica Lagoa Santa são todos muito importantes por demonstrarem a antiguidades dos grupos humanos na região e em Minas Gerais. Temos material de datas muito antigas, por volta de 11, 12 mil anos antes do presente”, conta Rodet.

Assim, os especialistas destacam que não é só o Lapa Vermelha que está sob risco pelo impacto da obra, nesse momento embargada, da fábrica da Heineken. Isnardis lembra que, ainda mais próxima da área de construção da planta industrial da cervejaria, está um outro sítio arqueológico a “céu aberto” – e agora ameaçado. “Do lado oposto onde ficam as clavas, tinha material cerâmico. É um sítio arqueológico aberto ali. E é no alto dessa vertente onde ele fica que a fábrica seria construída”, relata o professor da UFMG.

O fator principal, mas não único, a ameaçar os sítios arqueológicos envolve a obtenção da água pela fábrica. Esse risco existe porque a captação é feita de águas subterrâneas de áreas conectadas. E, ao embargar a obra do Grupo Heineken, o ICMBio relatou ver com preocupação o plano da cervejaria de bombear 150 metros cúbicos de água por hora de dois poços na região, o que causaria impacto relevante nos lençóis freáticos e nas cavernas.

“Eles vão extrair um volume grande de água do subterrâneo. E esse é um relevo delicado, cheio de cavernas, de condutos subterrâneos. A fábrica está dentro da unidade geográfica mínima. Está no relevo que chamamos de dolina. É como se fosse uma pia com um ralo, que é um conduto subterrâneo. A fábrica está dentro da pia”, detalha Isnardis.

Risco ao desconhecido
O sítio da Lapa Vermelha foi escavado na década de 1970, em um trabalho coordenado pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire. Nessa iniciativa, então se encontrou o esqueleto de Luzia, datado de 11 mil anos atrás. Mas ainda pode haver resquícios arqueológicos por lá.

Ou seja, possibilidades de descobertas envolvendo a ocupação de Minas Gerais e mesmo o avanço nos estudos sobre a chegada do homem ao continente americano podem se perder com os riscos aos quais está exposto um sítio arqueológico que ainda nem foi completamente explorado, como argumenta Rodet.

É um sítio que tem muito a nos dar. Ele não terminou de nos dar informações. Não pode ser destruído por uma retirada drástica de água do subsolo. A APA é muito sensível. E qualquer transformação relevante no subsolo pode desmantelar o relevo. A gente não pode perder informações das nossas origens, seus complementos, o link da arqueologia brasileira com o resto do mundo

Maria Jacqueline Rodet, professora de arqueologia da UFMG

Isnardis ressalta que os estudos arqueológicos ainda não conseguiram obter todas as informações sobre a ocupação da região. E esse desconhecido, com a possibilidade de descobertas importantes, deveria ser valorizado com a preservação dessa área de proteção ambiental.

“Além das pinturas rupestres, tudo que está enterrado e não foi conhecido, pode perder referências para entender esse momento das ocupações mais antigas em Minas Gerais, desse período de mais de 10 mil anos atrás. A gente sabe que tem camadas mais antigas. É um lugar com potencial para explicar as ocupações mais antigas de Minas Gerais. A gente não sabe o que tem. Então temos que valorizar essa possibilidade, o que esse conjunto tem para nos ensinar”, acrescenta o professor da UFMG.

Entender o povoamento – e não apagá-lo
Ciência viva, a arqueologia convive com algumas teorias para explicar o povoamento das Américas. Inicialmente se acreditava que populações do leste da Ásia atravessaram o estreito de Bering, chegando primeiro à América do Norte, depois descendo à América do Sul.

Mas a descoberta de Luzia reforçou outra teoria. Nesse caso, o povoamento das Américas teria começado ainda antes, com humanos saídos da África e que cruzaram a Ásia, em duas grandes movimentações humanas, até a chegada ao Brasil. Algo que se entendeu como tese mais próxima de um acerto em função do tamanho do crânio de Luzia, parecido ao dos africanos e mais largo do que o dos indígenas.

Um estudo genético de Luzia, de 2018, apontou que a teoria de que duas populações povoaram as Américas poderia não fazer sentido. Assim, o povo de Luzia teria chegado à América junto com as demais populações que vieram da Ásia. As respostas para questões importantes sobre esse povoamento, como destaca Isnardis, podem estar onde Luzia foi encontrada. “Por isso é tão importante a preservação dos sítios arqueológicos. É preciso ter mais materiais para os estudos.”

Esse risco de apagamento da história incomoda, evidentemente, arqueólogos e historiadores. Isnardis reclama da desvalorização de trabalhos que demonstrem a profundidade da história do Brasil.

“É um pouco caso muito grande com a nossa história. A narrativa oficial do Brasil é de que temos 500 anos. A Lapa Vermelha é importante para dizer que Minas Gerais é um lugar que tem mais de 10 mil anos, de mostrar que fazemos parte de algo muito maior. E isso é tratado como irrelevante”, reclama o professor da UFMG.

Para Mônica Faria, historiadora e professora na rede pública de São Paulo, a possibilidade de o sítio arqueológico ser afetado pela obra e operação da Heineken também é um apagamento da civilização e da história do homem negro.

“Destruir a Lapa Vermelha é mais uma vez tentar apagar uma história de um povo, de uma civilização. Isso é um crime. Além de apagar a história, você perde muito em conhecimento, e em meios financeiros. Querendo ou não, o Brasil tem um péssimo hábito de apagar o seu passado. E apaga porque quer esconder. O Brasil não se vê como um país preto”, argumenta Faria.

Já Delton Aparecido Felipe, pós-doutor em História e diretor de relações internacionais da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, avalia que uma sociedade se constrói a partir do conhecimento sobre sua origem. E é isso que está sob risco. “Um sítio arqueológico é um patrimônio histórico e nos permite olhar para a nossa história, de onde viemos e para onde vamos. A história é fundamental para lembrar do que devemos manter.”

E Faria lembra que sítios arqueológicos importantes para contar a história da civilização, como é o caso do Lapa Vermelha, poderiam trazer benefícios ao Brasil a partir da viabilização de atividades turísticas relacionadas a essa rica arqueologia.

“As pessoas não conseguem conceber ou entender que a preservação da Lapa Vermelha pode se tornar também um polo turístico. E pode-se arrecadar muito dinheiro. O Brasil não é só praia, não é só carnaval, o Brasil tem outras coisas para mostrar, inclusive essas. O cultural também chama a atenção. A gente sai daqui para ir à Europa ver as nossas peças em outros lugares”, lamenta a historiadora.

“Viabilidade em xeque”
Embargada pelo ICMBio em função do risco de soterramento do sítio arqueológico, a obra de construção da fábrica pelo Grupo Heineken em Pedro Leopoldo também se tornou alvo de inquérito instaurado pelo MP-MG. Um dos questionamentos da procuradoria é se houve realização de estudo de impacto arqueológico. Algo que não estava incluso nos documentos iniciais de impacto da obra, que recebeu a liberação da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad-MG).

“O mínimo seria uma avaliação cuidadosa. Mas eu acho inadequado implementar uma fábrica de cerveja nessa região, não há motivos razoáveis. Se houvesse uma avaliação, acho que nenhum profissional da arqueologia liberaria”, aponta Isnardis, citando que, além da captação da água, ocorrências como poeira, trepidação e mesmo fumaça, comuns em plantas industriais, poderiam causar danos ao sítio arqueológico.

O professor da UFMG também aponta o que entende como um afrouxamento das regras de licenciamento nos últimos anos em obras, citando, especificamente, a adoção do Licenciamento Ambiental Simplificado para alguns casos em Minas Gerais, o que coloca em risco o patrimônio cultural e ambiental.

“Isso aumenta os riscos a patrimônios culturais e naturais. Além disso, uma área como a de Pedro Leopoldo, Matozinhos e Lagoa Santa não deveria ter nenhuma obra sem avaliação arqueológica. Todos sabem que são áreas com muitos sítios arqueológicos”, argumenta Isnardis.

Até o Ministério Público ingressar no caso, uma audiência estava marcada para 9 de outubro. Mas, antes do embargo, a obra chegou a ser iniciada, em função do aval da Semad-MG ao Grupo Heineken, com a secretaria avaliando que a construção não teria “significativo impacto ambiental”.

Ela estava em fase de aterramento, mas acabou sendo paralisada em 10 de setembro, após a visita de fiscais do ICMBio, de acordo com a companhia. Nos próximos passos do caso, Isnardis espera que se analise, de fato, se a obra é viável ou uma ameaça a um importante sítio arqueológico.

Eu espero que o ICMBio demande avaliações mais amplas, a secretaria reconheça que ao menos nesse caso não pode haver Licenciamento Ambiental Simplificado e que sejam feitos estudos para avaliar a situação, não para viabilizar a obra, cumprir essa formalidade. É a viabilidade da obra que está em xeque

Andrei Isnardis, professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG

A fábrica
A obra de construção da fábrica do Grupo Heineken em Pedro Leopoldo havia sido anunciada em fevereiro e seria a primeira da cervejaria em Minas Gerais, com companhia já possuindo centros de distribuição e logística em Contagem e em Poços de Caldas, onde o seu nível de estocagem foi triplicado. A planta industrial teria capacidade para produzir 760 milhões de litros por ano. E, segundo anúncio do governo mineiro, o investimento na obra seria de R$ 1,8 bilhão.

A fábrica prevista para Minas Gerais é a 16ª da companhia no país e pode ser considerada, de fato, a primeira do Grupo Heineken a ser construída pela própria empresa, pois as demais foram incorporadas com a aquisição da Brasil Kirin em 2017.

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