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Congo, Brasil e cerveja: Como se entrelaça uma relação que se transformou em tragédia

cerveja congo
Morto em 25 de janeiro no Rio de Janeiro, Moïse Mugenyi Kabagambe havia chegado ao Brasil em 2011, fugindo dos conflitos no Congo

Um jovem negro é açoitado até a morte em praça pública. A cena, corriqueira em momentos do período escravocrata do Brasil, voltou a se repetir neste começo de 2022, no Rio. Os sinais a uni-las vão além do racismo e das relações de trabalho. Envolvem, também, o Congo, uma país marcado por tragédias provocadas por quem chega de fora e que tem sua história tão intrinsecamente ligada à brasileira quanto o desconhecimento dessa trajetória por aqui, o que inclui a relação dessa nação africana com a cerveja de banana.

De colonização portuguesa, o Brasil forjou a sua sociedade sob diversas influências. Uma das notáveis, foi a da região da África onde está localizado o Congo, de onde veio um expressivo contingente de escravizados. E que trouxe, consigo, aspectos culturais importantes ao país, como a fundamental participação da construção do samba. Uma ligação que se transformou em tragédia no fim de janeiro, com a morte de Moïse Mugenyi Kabagambe, expondo o racismo do país. E que ainda possui uma tímida ligação através da cerveja, a de banana, muito presente no território do Congo.

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A composição étnica do Brasil é, hoje, predominantemente influenciada pelos descendentes africanos, que dão origem a mais da metade da população. Uma ancestralidade que vem do período escravocrata, quando os africanos trazidos de forma forçada ao país eram, em sua maioria, da região onde está o Congo.

Essa história é permeada, também, por outra tragédia, afinal o Congo, como um reino, funcionava de modo sistematizado e complexo, tendo como seu apogeu o século XV. Além disso, seus habitantes eram considerados grandes agricultores e tinham bom conhecimento de metalurgia e de línguas de regiões próximas. É, inclusive, essa característica que deu muitas palavras de origem banto ao vocabulário da população brasileira.

Algo rompido com a chegada dos portugueses ao seu território. “O historiador e antropólogo Angolano Patrício Batsikama, afirma que a democracia nasceu no Reino do Congo. Segundo ele, embora o poder fosse centralizado na figura do líder, chamado de Manicongo, existia um conselho que o auxiliava nas funções administrativas. Em tese, o Manicongo, ouvia o conselho, que era formado por pessoas da comunidade, antes de tomar qualquer decisão. O reino possuía moeda própria, coletava impostos e comerciava com outros povos”, destaca, ao Guia, Sara Araújo, sommelière de cervejas, graduada em Ciências Sociais, pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica.

Mas a correlação entre o Congo e o Brasil vai bem além do uso de palavras de origem banto. As primeiras manifestações que dariam origem ao samba datam do século XVI com negros de Angola e do Congo que chegaram ao Brasil, escravizados, e trouxeram o batuque africano. Foi dessa semente que emergiu um ritmo imediatamente associado ao país em qualquer localidade do mundo.

Assim, como a tragédia impingida por estrangeiros ao Congo não se resume à passagem dos portugueses por lá.  Afinal, a Conferência de Berlim, em 1884 e 1885, fatiou a África entre países europeus e destinou o Congo para a Bélgica. Deixou, assim, o país sob as mãos de Leopoldo II, rei do país e um dos mais sanguinários homens da história, sendo responsável por milhares de mortes e por degolar parte do corpo de milhares de congoleses, para amedrontá-los.

Uma mudança de poder que desestabilizou o país, com seguidas guerras civis e disputas por suas riquezas naturais. Assim, a população não consegue usufruir das benesses de uma terra que tem, em seu solo, recursos como cobalto, diamante, cobre, urânio e ferro.

Imigração ao Brasil
Resta, assim, a muitos congoleses a opção da imigração. E muitos deles escolhem o Brasil, país com mais descendentes africanos fora do continente original. De acordo com o Sistema Nacional de Cadastramento de Registro de Estrangeiros, eram 2.064 congoleses no Brasil em 2020, com uma predominância de homens solteiros, entre 20 e 24 anos, morando em São Paulo ou no Rio de Janeiro.

Era exatamente esse o perfil de Moïse Kabagambe, que deixou o Congo em função dos conflitos na província de Ituri.

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O que muitos deles não sabem é que o Brasil é o país mais racista do mundo e mais letal para pessoas pretas. O Brasil foi instrumentalizado para receber pessoas oriundas do continente europeu e aparelhado para desumanizar ou matar corpos pretos

Sara Araújo, sommelière, pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica

Com 24 anos, Möise, havia migrado em 2011 para o Brasil, fugindo da guerra, com a sua família, mas acabou sendo morto em 24 de janeiro. Isso se deu após ir ao quiosque Tropicália, onde trabalhava, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, para cobrar duas diárias ainda não pagas. Vídeos mostram que ele foi amarrado e espancado, inclusive com um taco de beisebol.

O caso de Möise só veio à tona em 29 de janeiro, com protestos ocorrendo em todo o Brasil, no último sábado (5), em que se condenou a xenofobia e o racismo, um clamor reforçado por outra morte brutal de um negro, no dia 3, quando Durval Teófilo Filho foi baleado. Ao chegar em sua residência, em São Gonçalo (RJ), um vizinho atirou, sob a alegação de achar se tratar de um assaltante.

A cerveja de banana do Congo
Mas a história do Congo, um país com quase 90 milhões de habitantes e forte potencial agrícola, e a relação com o Brasil são pouco difundidas no país. Não à toa, há um total desconhecimento dessa trajetória de tragédias, das suas riquezas e da relação com a cerveja. Por lá, é bastante difundida a “cerveja de banana” que, semanticamente, pode até não se inserir no conceito adotado no Brasil para a cerveja, como admite Sara.

“Você aí do outro lado vai dizer: ‘mas, Sara, não se entende como cerveja o que está estabelecido no artigo 2º e seus parágrafos, da Instrução Normativa 65/22019? Desse modo, cerveja de banana não seria uma outra bebida?’ Pode ser no entendimento eurocêntrico. Para os congoleses, não. E, aqui, precisamos romper com o mito da história única”, defende.

A produção da cerveja de banana se dá de modo artesanal, nas comunidades do Congo, com a primeira etapa sendo a extração do suco da banana, que é embalada e enterrada, depois sendo espremida. O suco, então, é colocado em um barril, com o intuito de ser fermentado.

“Um volume de água é adicionado a cada três volumes de suco de banana. Isso torna os sólidos solúveis totais baixos o suficiente para a levedura agir. Os cereais são moídos e torrados e adicionados para melhorar a cor e o sabor do produto final. A mistura é colocada em um recipiente, que é coberto com polietileno para fermentar por 18 a 24 horas. As matérias-primas não são esterilizadas por fervura e, portanto, fornecem um excelente substrato para o crescimento microbiano”, relata, em documento, a FAO.

O uso da banana, um recurso retirado da terra, para criação de uma cerveja no Congo faz lembrar o Brasil com o crescimento do apelo por rótulos com frutas. “É comum vermos pessoas da comunidade cervejeira fazendo piadas com relação às cervejas de banana produzida na região do Congo, mas não fazem piadas com as cervejas que levam frutas como laranja, coentro, abacaxi, limão, uva, pitaia, jabuticaba, caju, e por aí vai. Só para observarmos que tudo vem de África, é lido como algo exótico, mas não é exótico uma cerveja que leva frutas se elas vêm de origem europeia, como a Witbier, por exemplo”, critica a sommelière.

Cerveja ou não, a bebida produzida no Congo é bastante tradicional e uma importante fonte de receita para uma parcela da população.

A cerveja de banana é uma é uma bebida artesanal muito popular que leva o nome de kasiksi. É feita através do suco de dois tipos de banana, que é a base do mosto, levedo de cerveja, cevada e painço

Sara Araújo, sommelière, pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica

Típica do Congo, a cerveja por lá é produzida por mãos como as de Möise, de herdeiros de escravizados e de negros que até recebem refúgio no Brasil, mas têm suas vidas ameaçadas apenas por serem negros. “É preciso romper com o racismo, com a desumanização dos corpos pretos e o apagamento de sua história”, conclama a sommelière.

1 Comment

  • Jaime Cabral Reply

    14 de fevereiro de 2022 at 11:27

    Excelente artigo.
    Parabéns pela ousadia em abordar o tema

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