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Entrevista: “O setor cervejeiro precisa se preparar para as demandas dos Surdos”

Canal de Marcos Roberto de Oliveira se tornou uma importante fonte de informação e conhecimento para os Surdos do setor

O mês de setembro é marcado no Brasil por datas que reforçam a importância do respeito e da inclusão das pessoas com deficiências. No período, além de ser celebrado o Dia Nacional da Luta das Pessoas com Deficiência (21), também são comemorados os dias nacionais do Cego (17) e do Surdo (26), além do Dia da Língua Brasileira de Sinais – Libras (10). Para os Surdos, aliás, o Setembro Azul não apenas reforça a necessidade de ações de inclusão, mas celebra as suas conquistas, como afirma Marcos Roberto de Oliveira, idealizador do canal Cerveja Artesanal em Libras, em entrevista ao Guia.

Marcos Roberto é também consultor, tradutor e intérprete de Libras na Universidade Federal de Uberlândia e professor na empresa Interlibras. E, para ele, apesar dos desafios que os Surdos enfrentam, os últimos anos também foram marcados por avanços para a comunidade no Brasil. Mas o especialista alerta que ainda há muitas demandas a serem atendidas.

Um dos líderes da luta por inclusão e comunicação de direito dos Surdos no setor de cervejas artesanais do Brasil, ele conta que o canal no YouTube Cerveja Artesanal em Libras foi criado, inicialmente, para registrar brassagens e falar sobre insumos e equipamentos, depois se tornando uma importante fonte de informação e conhecimento para a comunidade.

De sua iniciativa já foram originadas várias ações de inclusão dos Surdos no setor, com a realização de cursos, a campanha Movimento Cervejeiro em Libras, que reuniu empresas no apoio ao uso e difusão da Libras no universo da cerveja, e o projeto do primeiro rótulo da bebida no Brasil acessível em Libras, lançado no último domingo.

“Eu ficava pensando em como o universo cervejeiro é tão plural e, ao mesmo tempo, tão excludente em relação a esta comunidade. Foi então que surgiu a ideia de difundir, entre os consumidores ouvintes, um pouco desse mundo representado em um rótulo”, reflete Marcos Roberto.

Apesar das conquistas sociais e das ações de inclusão, as pessoas Surdas ainda encaram um ambiente desafiador na sociedade e, consequentemente, no setor da cerveja artesanal do Brasil, com umas das principais barreiras sendo a comunicação.

O mercado cervejeiro atual precisa estar preparado para estas novas demandas inclusivas. Por exemplo, o arcabouço científico cervejeiro está disponível apenas na língua majoritária do país e não é acessível em Libras. Ora, eu simplesmente não posso negar a matrícula ou a participação de um aluno Surdo em um determinado curso cervejeiro só porque a instituição de ensino não está preparada

Marcos Roberto de Oliveira, idealizador do canal Cerveja Artesanal em Libras

Logo, é perceptível também que o setor da cerveja artesanal no Brasil necessita considerar como prioridade a acessibilidade e respeito às diferenças, não apenas em relação aos Surdos, mas para as diversidades que compõem a sociedade e que também geram impactos diretos no mercado. “Eu acredito que o uso e difusão da língua brasileira de sinais é um direito linguístico inviolável e inegociável em qualquer contexto.”

Leia também – Centenário Paulo Freire: A emancipação pela educação e a homenagem em cerveja

Confira, a seguir, a entrevista que Marcos Roberto de Oliveira concedeu ao Guia:

O Setembro Azul reforça a luta por inclusão e respeito às diferenças, mas também celebra as conquistas dos Surdos. No Brasil, podemos dizer que tivemos conquistas importantes nos últimos anos?
Os últimos anos, sem dúvida alguma, foram de muitas conquistas para a comunidade Surda brasileira. A mais emblemática e importante delas aconteceu no dia 24 de abril de 2002 com a promulgação da Lei 10.436, que reconheceu a Língua Brasileira de Sinais – Libras como meio legal de comunicação e expressão dessas comunidades no país. Desde então, inúmeros avanços foram conquistados, como, por exemplo, as universidades tendo de se adequarem para a oferta da Libras nos currículos das licenciaturas; os mestres e doutores Surdos se destacando no cenário acadêmico e conquistando os seus lugares de fala; a regulamentação da profissão de Tradutor e Intérprete de Libras/LP (TILSP), impulsionada pela ascensão da comunidade Surda; os espaços públicos e privados se adequando às especificidades comunicacionais dos Surdos; a conquista de uma educação bilíngue de Surdos como modalidade de ensino independente, apenas para citar algumas. O fato é que essa comunidade, que antes fora silenciada, passou a exigir da sociedade ações práticas no que diz respeito ao uso e difusão da sua língua independente do contexto. Atender a essas demandas comunicativas frente às várias instâncias sociais também afeta diretamente o mercado cervejeiro porque estamos falando não só de acessibilidade comunicacional, mas de respeito ao direito fundamental linguístico – e isso o mercado cervejeiro não pode ignorar.

Como você avalia a presença dos Surdos no setor cervejeiro do Brasil?
Muito promissora, mas também desafiadora. Por exemplo, ter um empreendimento cervejeiro não depende exclusivamente da língua que se fala. Logo, um Surdo pode perfeitamente ter sua própria cervejaria. Isso inclusive já é uma realidade, por exemplo, no mercado cervejeiro dos Estados Unidos. A Blonde 82 Brewing Co em Hyattsville foi a primeira cervejaria operada exclusivamente por cervejeiros Surdos. Outras cervejarias são a Lochiel Brewing, dirigida pelo mestre-cervejeiro Surdo Ian Cameron em Mesa, no Arizona, e a Yellowhammer Brewing em Huntsville, no Alabama, com o cervejeiro Surdo Jim Hammontree. O que parecia ser impossível já é uma realidade e é claro que os Surdos no Brasil se espelham nesses cervejeiros.

Destaque também para os inúmeros cervejeiros caseiros Surdos espalhados pelo Brasil que exigem do mercado um atendimento a contento. Ou seja, não dá para fugir da realidade, o mercado cervejeiro atual precisa estar preparado para estas novas demandas inclusivas. Por exemplo, o arcabouço científico cervejeiro está disponível apenas na língua majoritária do país e não é acessível em Libras. Ora, eu simplesmente não posso negar a matrícula ou a participação de um aluno Surdo em um determinado curso cervejeiro só porque a instituição de ensino não está preparada.

Hoje, o mercado homebrew não é acessível aos clientes Surdos. Caso esse cliente precise de uma informação específica de um insumo ou produto, a resposta será em língua portuguesa ou em Libras? Os pubs oferecem atendimento em Libras? As cervejarias possuem estratégias bem definidas para fidelizar esse público? É importante destacar que ações que promovam um ambiente acolhedor, acessível e que respeite às diferenças podem trazer uma série de vantagens, tanto do ponto de vista corporativo quanto com relação à imagem da cervejaria perante seu mercado e a sociedade. Eu acredito que o uso e difusão da língua brasileira de sinais é um direito linguístico inviolável e inegociável em qualquer contexto.

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Existe preconceito com os Surdos no setor cervejeiro?
Eu não posso afirmar que há no setor um preconceito explícito ou velado com os consumidores Surdos. Nós sempre queremos acreditar que não há preconceito a um determinado grupo social. O que eu posso afirmar categoricamente é que há escassez de informações para o setor, apesar da crescente democratização do processo de inclusão. Quais informações? Por exemplo, quem é esse consumidor Surdo? O que é essa língua de sinais? Quais são as especificidades linguísticas e culturais desse consumidor? Como posso adequar o meu produto, o meu curso, a minha loja, o meu pub, o meu atendimento para esse público emergente? Essas são perguntas que exigem respostas por parte do setor. Eu, particularmente, quero fazer o dever de casa e acredito que todas as ações que venho divulgando sejam o pontapé inicial para que o setor entenda e desperte para esse público.

Como o setor poderia se tornar mais inclusivo?
Promovendo ações, mesmo que simples, mas que estejam alinhadas ao direito linguístico dos Surdos. Na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde atuo como tradutor intérprete de Libras, há uma professora, a doutora Marisa Lima, que é Surda e que em uma das suas aulas na qual interpretei, disse uma frase que me marcou muito. Ela disse: “Nós, Surdos, não precisamos de acessibilidade. Precisamos apenas que o nosso direito linguístico seja respeitado.”

Qual é a importância da inclusão dos Surdos no setor de cervejas no Brasil? De que forma este público pode colaborar com o desenvolvimento do segmento no país?
Independentemente do setor, a inclusão é necessária. Para refletirmos um pouco, posso inverter a pergunta: por que os Surdos não estão inclusos no setor de cervejas no Brasil? Por falta de acessibilidade na informação e por ignorância da sociedade (falta de informações), que muitas vezes os enxergam como incapazes. Incluí-los é uma forma de desmistificar estereótipos e isso irá contribuir para que o setor seja cada vez mais plural. Lembro-me, com muita indignação, quando aqui no Brasil uma mulher negra levantou sua bandeira antirracista no meio cervejeiro e como isso evidenciou um mercado com um ambiente não tão inclusivo e democrático. Será que se um Surdo conquistar o seu espaço no meio cervejeiro brasileiro também sofrerá ataques simplesmente por ser Surdo? É preciso refletir. Para evitar episódios preconceituosos, com os futuros empreendedores Surdos, precisamos voltar ao cerne da questão: acessibilidade e inclusão dos Surdos se resumem ao uso e difusão da Libras, ou seja, o direito linguístico sendo respeitado. De modo geral, quanto à segunda pergunta, não se pode atrelar o poder de compra ou de empreendedorismo de um Surdo simplesmente pela sua condição. Ou seja, os Surdos colaboram com o desenvolvimento do setor assim como qualquer outro consumidor ou empreendedor.

Foi lançado, recentemente, o primeiro rótulo de cerveja acessível em Libras. Pode falar mais sobre essa cerveja?

O rótulo é uma IPA e totalmente acessível em Libras com o uso de um QR Code que o consumidor usará no seu celular para ver um vídeo que o conduzirá ao universo Surdo. O vídeo, totalmente em Libras e traduzido também para a língua portuguesa, explicará, por exemplo, as características da cerveja, como harmonizá-la, explicará o que é o Setembro Azul e o que é a Libras, ou seja, o direito linguístico simbolizado em uma cerveja para celebrar o respeito às minorias. Essa cerveja recebeu o nome de Setembro Azul, uma singela homenagem ao mês da conscientização e respeito à cultura Surda.

Como surgiu a ideia desse rótulo?
Eu ficava pensando em como o universo cervejeiro é tão plural e, ao mesmo tempo, tão excludente em relação a esta comunidade. Foi então que surgiu a ideia de difundir, entre os consumidores ouvintes, um pouco desse mundo representado em um rótulo. Queremos que o consumidor ouvinte que não tem contato direto com os Surdos, que não sabe o que é a língua de sinais e que não sabe da história dessa comunidade, possa ter, com este rótulo, o primeiro acesso e, quem sabe, estreitar as barreiras linguísticas que os separam. No vídeo, os ouvintes poderão, inclusive, aprender alguns sinais. Ao longo da história da humanidade, a cerveja sempre foi aglutinadora e ainda o é. Então, é muito legal sentar com os amigos e degustar uma cerveja de qualidade e ainda aprender um pouquinho sobre a comunidade Surda e sua língua. A produção da cerveja ficará a cargo da cervejaria Bezy, de Brasília, que acreditou na importância social do projeto e prontamente o abraçou. A Bezy está sempre antenada em questões sociais e de voluntariado, e isso casou bem com o objetivo maior do projeto, que é unir as comunidades de Surdos e ouvintes em um só idioma: a boa cerveja.

Você ministra cursos exclusivos para Surdos que atuam com a cerveja ou têm esse desejo. Como nasceu esse projeto? Como tem sido seu desenvolvimento?
O projeto nasceu quando um amigo Surdo entrou em contato e relatou sua angústia e frustração ao tentar empreender no setor cervejeiro. Empreender no Brasil já é uma grande aventura (com muita dor de cabeça), imagine para um Surdo. O primeiro grande problema que ele enfrentou foi o acesso às informações legais e, posteriormente, ao conteúdo científico cervejeiro. Assim, na tentativa de mudar essa realidade, criei um curso introdutório de produção. O curso foi desenhado pensando nas especificidades linguísticas do público e é exclusivo para Surdos. Mesmo eu sendo cervejeiro caseiro já por um bom tempo, eu precisava entregar um conteúdo robusto e de qualidade, mas que viesse com o respaldo de um cervejeiro profissional qualificado. Diante disso, fechei uma parceria com Patrick Simões, químico industrial de formação, doutor em Ciências pela USP e mestre cervejeiro de uma cervejaria local, e com a Ceva da Boa – Brewshop, loja de insumos local que conseguiu viabilizar a prática do curso.

Quais são seus maiores desafios com os cursos para os Surdos? E quais são suas expectativas?
A primeira turma foi um sucesso. Tivemos alunos de Minas Gerais, Goiás e Distrito Federal. Os alunos já estão colocando a mão na massa e aplicando os conteúdos em casa. É muito gratificante saber que posso contribuir para o crescimento profissional dos Surdos no setor cervejeiro. Infelizmente, o nosso maior desafio ainda é a ignorância da sociedade que, por sua vez, não acredita no potencial empreendedor do Surdo. Espero, sinceramente, que isso mude e que a barreira entre a sociedade e a comunidade Surda seja apenas comunicacional, porque isso é fácil de resolver.

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